GAVESTON & EDUARDO / RENATO VIEIRA CIA DE DANÇA : RELEITURA DE UM TEMA MEDIEVAL COM O OLHAR ARMADO NA CONTEMPORANEIDADE
Gaveston & Eduardo/Renato Vieira Cia de Dança. Renato Vieira/Coreografia/Direção Concepcional. Novembro/2024. Robert Schwenk / Fotos.
Review:Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança)
Wagner Correa Cel.: +55 (21) 99644-4139 wagner.correa@escriturascenicas.com.br
Portuguese
O poeta e dramaturgo inglês Christopher Marlowe abordou em sua peça Eduardo II, no ano 1590 da era elizabetana, o polêmico relacionamento amoroso entre o rei Eduardo e Piers Gaveston, um conde tornado o favorito de sua corte londrina medieval, desafiando todos os preconceitos religiosos e morais da época relativos às ligações homoeróticas. Mas só no século XX a peça despertou novamente a atenção, desde a versão teatral, imprimida por Bertold Brecht, à transposição cinematográfica de Derek Jarman, em 1991, seguida da primeira adaptação para a cena coreográfica por David Bintley, atendendo a uma solicitação de Márcia Haydée para o repertório do Stuttgart Ballet, em 1995. Tendo sido possivel, depois de tempos difíceis, tanto o filme como o balé, graças à onda libertária no entorno da livre identificação sexual nos anos 70/80 embora, na década seguinte, já se sentisse o enfrentamento da avassaladora epidemia da AIDS, o que acabou, inclusive, vitimando o cineasta inglês e reativando a pulsão homofóbica. Tanto o enredo do filme como o do balé, na busca do alcance de uma linguagem comprometida com a atualidade, equilibrando-se entre duas épocas para focalizar uma resistência quase milenar contra os desejos homoeróticos e também para ecoar os anseios de uma acirrada luta continuada, nos dias de hoje, pelo esforço e tomada de posição da comunidade LGBTQIA contra este fluxo repressor. Nos palcos cariocas, o diretor Moacyr Goes chegou a encenar a peça com fidelização ao texto dramatúrgico original, pela tradução de Barbara Heliodora, sendo a concepção da Renato Vieira Cia de Dança mais ousada em sua formatação como um teatro coreográfico, sabendo como conectar-se com uma temporalidade ancestral, sempre retomada à luz de uma presencial contemporaneidade. Sob este direcionamento inventivo, o empenho do coreógrafo Renato Vieira sugestionando em paralelo, na sua livre concepção textual e direcional (com pareceria de Bruno Cezario), os conflitos da corte medieval presidida por Edward II e a rainha Isabella, de origem francesa, diante da prevalência de sua irrestrita paixão por Gaveston. Com destaques performáticos na protagonização do rei (Higor Campagnaro) como do cortesão alçado a conde (Bruno Cezário), além da rainha (Monica Burity) e seu comparsa/conspirador General Mortimer (Felipe Padilha), mais o Bispo (Rafael Gomes) e a alternância de outros personagens por Hugo Lopes. Num elenco sustentado por uma coesiva potencialidade no desempenho energizado e qualitativo como atores/bailarinos, dando vazão a uma corporeidade gestual que estabelece uma imediata conexão emotiva espaço arena-platéia, ampliada pelos vibrantes solos autorais (cello e guitarra) de Rafael Kalil e Daniel Drummond. Que se completam por citações de antológicos temas roqueiros, indo dos Rolling Stones, Pink Floyd e AC/DC às sonoridades pop/dançantes de Tracy Chapman. O que traz um diferencial da versão de David Bintley para o Stutttgart Ballet, mais à base de canticos medievais e música sinfônica contemporânea. E se estende também a um atemporal sustento cenográfico (Adriana Lima) usando um decor com sutil sotaque gótico na cortina frontal de apliques dourados, na coroa e nos tronos reais. Confrontando-se com figurinos (Bruno Cezario) marcados por tonalidades cotidianas ao lado de sensualizados corpos desnudos, acentuados por vazados ou focais efeitos luminares (Eduardo Dantas Careca). Onde, diante de um ascendente retrocesso conservador promovido pelo nosso último (des) governo, tanto na cultura como no comportamento político/social, fica ressaltada a importância de criações coreográficas com este teor denunciativo e questionador como é o caso de Gaveston & Eduardo, incluindo-se, aqui, algumas instantâneas e oportunas verbalizações dramatúrgicas. Em mais uma luminosa iniciativa da Renato Vieira Cia de Dança que, após um longo período sem apresentar um espetáculo inédito completo, com sentida ausência a partir do surto da Covid 19, está de volta, abrindo novas perspectivas estético/temáticas na dança contemporânea para deleite lúdico-reflexivo do universo coreográfico brasileiro...
Wagner Corrêa de Araújo Gaveston & Eduardo, com a Renato Vieira Cia de Dança, esteve em cartaz no Espaço Sesc/Arena/Copacabana/RJ, em duas semanas de novembro, com previsão para novas temporadas.
GAVESTON & EDUARDO / RENATO VIEIRA CIA DE DANÇA: REINTERPRETATION OF A MEDIEVAL THEME WITH AN ARMED GAZE IN CONTEMPORANEITY
Review:Wagner Corrêa de Araújo (Danse Critic)
English
Gaveston & Eduardo/Renato Vieira Dance Company. Renato Vieira/Choreography/Conceptional Direction. November/2024. Robert Schwenk / Photos.
The English poet and playwright Christopher Marlowe addressed in his play Edward II, in the year 1590 of the Elizabethan era, the controversial love relationship between King Edward and Piers Gaveston, an earl who became a favorite of his medieval London court, challenging all the religious and moral prejudices of the time regarding homoerotic liaisons. But it was only in the twentieth century that the piece aroused attention again, from the theatrical version, printed by Bertolt Brecht, to the cinematographic transposition by Derek Jarman, in 1991, followed by the first adaptation for the choreographic scene by David Bintley, in response to a request from Márcia Haydée for the repertoire of the Stuttgart Ballet, in 1995. It was possible, after difficult times, both the film and the ballet, thanks to the libertarian wave around free sexual identification in the 70s and 80s, although, in the following decade, the confrontation of the overwhelming AIDS epidemic was already felt, which ended up victimizing the English filmmaker and reactivating the homophobic drive. Both the plot of the film and that of the ballet, in the search for the reach of a language committed to the present, balancing between two eras to focus on an almost millennial resistance against homoerotic desires and also to echo the yearnings of a fierce continuous struggle, nowadays, for the effort and position of the LGBTQIA community against this repressive flow. On the stages of Rio de Janeiro, director Moacyr Goes even staged the play with fidelity to the original dramaturgical text, by the translation of Barbara Heliodora, being the conception of Renato Vieira Cia de Dança more daring in its formatting as a choreographic theater, knowing how to connect with an ancestral temporality, always resumed in the light of a face-to-face contemporaneity. Under this inventive direction, the effort of the choreographer Renato Vieira suggesting, in parallel, in his free textual and directional conception (with the partnership of Bruno Cezario), the conflicts of the medieval court presided over by Edward II and Queen Isabella, of French origin, in the face of the prevalence of his unrestricted passion for Gaveston. With performative highlights in the protagonist of the king (Higor Campagnaro) as well as the courtier elevated to count (Bruno Cezário), in addition to the queen (Monica Burity) and her accomplice/conspirator General Mortimer (Felipe Padilha), plus the Bishop (Rafael Gomes) and the alternation of other characters by Hugo Lopes. In a cast sustained by a cohesive potentiality in energized and qualitative performance as actors/dancers, giving vent to a gestural corporeality that establishes an immediate emotional connection between the arena-audience space, amplified by the vibrant authorial solos (cello and guitar) of Rafael Kalil and Daniel Drummond. Which are completed by quotes from anthological rock themes, ranging from the Rolling Stones, Pink Floyd, and AC/DC to the pop/dance sounds of Tracy Chapman. This brings a difference from David Bintley's version for the Stutttgart Ballet, more based on medieval chants and contemporary symphonic music. And it also extends to a timeless scenographic sustenance (Adriana Lima) using a décor with a subtle gothic accent on the front curtain of golden appliqués, the crown, and the royal thrones. Confronting himself with costumes (Bruno Cezario) marked by everyday tonalities alongside sensualized naked bodies, accentuated by hollow or focal luminary effects (Eduardo Dantas Careca). Where, in the face of an ascendant conservative regression promoted by our last (mis)government, both in culture and in political/social behavior, the importance of choreographic creations with this denunciatory and questioning content is highlighted, as is the case of Gaveston & Eduardo, including, here, some instantaneous and timely dramaturgical verbalizations. In yet another luminous initiative of Renato Vieira Cia de Dança which, after a long period without presenting a completely new show, with a felt absence from the Covid 19 outbreak, is back, opening new aesthetic/thematic perspectives in contemporary dance for the playful-reflective delight of the Brazilian choreographic universe...
Wagner Corrêa de Araújo Gaveston & Eduardo, with Renato Vieira Cia de Dança, was on display at Espaço Sesc/Arena/Copacabana/RJ, in two weeks of November, with new seasons planned.
SACRO : EM COMPASSO EXTÁTICO, CONECTANDO O CORPO À TERRA E AO CÉU
Sacro. Márcio Cunha, concepção coreográfica. Agosto 2022. Fotos/Carol Pires.
Sacro reestreia em segunda temporada, com uma outra releitura, de 14 a 01 de dezembro, quinta a domingo, às 19hs, no Teatro Cacilda Becker/RJ. “Estamos vivos em 2024 e isso é muita coisa. Estamos todos conectados pelo ar, pelo chão e pelo som ao nosso redor. Vivemos em um país em que seguir fazendo dança é um ato de extrema coragem e amor”. Dando vazão a estas palavras tão necessárias a um tempo em que são cada vez mais recorrentes os ataques à necessária conexão entre a arte, o homem e a terra, a performer, bailarina e terapeuta Micheline Torres inspirou o ideário dramatúrgico da mais nova criação coreográfica de Márcio Cunha. Titulado simbolicamente como Sacro, este espetáculo de dança-teatro também faz eco a um vínculo sagrado entre o corpo e a natureza numa transcendência gravitacional com as energias cósmicas através de sua representação performática. Na busca da empatia coreográfica correspondente ao que o filósofo Merleau-Ponty chama de fenomenologia da percepção capaz, assim, de possibilitar o "entrelace sinestésico" ou troca sensorial entre o artista/bailarino e o espectador. Dando ainda eco a uma propensão coreográfica de busca inventiva do movimento natural que estabeleça um despertar psicofísico entre a ambiência da natureza e a interioridade humana. Que vem desde a sua precursora/visionária Isadora Duncan, passando por nomes da dança pós-moderna, até chegar a contemporâneos como o anglo/paquistanês, Akram Khan. Márcio Cunha é um dos mais contumazes adeptos desta tendência, exemplarmente mostrada em suas últimas criações cênicas como Rosário (2018) e Barro (2019), além de outras de experimentalismo virtual para tempos pandêmicos e, agora, neste Sacro em sua volta ao palco presencial. Tornando prevalente seu conceitual estético e coreográfico no entorno do cósmico encontro do homem com os elementos orgânicos, numa dança na e pela natureza. Diferencial apenas por sua não participação, como de hábito, no papel de performer protagonista/bailarino solo. Mas acumulando um tríplice ofício artístico por sua concepção, direção e ambientação cênica, tendo como intérpretes reconhecidas personalidades da dança contemporânea brasileira, integrantes de uma geração potencial de coreógrafos/bailarinos, a saber Denise Stutz, Frederico Paredes e Giselda Fernandes. Situados espacialmente em envolvente concepção cenográfica (Márcio Cunha) com cadeiras formatadas como galhos de arvores, na plasticidade de uma instalação paisagística sugestionando elementos ambientais, ressaltados em variações luminares (Juca Baracho). Portando os bailarinos uma indumentária cotidiana em tonalidades de predominâncias claras, por Karlla de Luca. Sob uma trilha incidental (Leonardo Miranda) à base de acordes fragmentários que vão de solos instrumentais, como uma original transcrição para flautim do hino nacional, a instantâneos trechos de Bach ou de cantos de terreiro. Entremeados pela prevalência de sonoridades florestais, ruídos de ventos, chuvas e cantos de pássaros. O gestual dos bailarinos, ora expressando a vivência lúdica/sensorial de questões ecológicas ora mergulhando na interioridade do eu, numa autodescoberta palpável da conexão física e espiritual com si mesmo e com a natureza. Do dançar inicializado em círculo tridimensional, três bailarinos como um só corpo, empenhados na abertura de portas metafísicas sob posturas meditativas ou energizadas no acionamento das tensões em movimentos mais bruscos. Ao lado de uma mascaração facial teatralizada entre intuitivas manifestações de alegria ou de dor, no desafio dos enigmas do Sacro e diante do difícil suporte da condição humana e sua corporeidade terminal transmutada em parte orgânica do solo. Integralizando emotivamente o que se poderia denominar de uma “biomimética” coreográfica nesta dança do Ser com a Terra. Numa pulsão transcendente capaz de remeter ao emblemático ideário de Martha Graham no acreditar que onde quer que um bailarino pise é solo sagrado...
Wagner Corrêa de Araújo Sacro reestreia em segunda temporada, com uma outra releitura, de 14 a 01 de dezembro, quinta a comingo, às 19hs, no Teatro Cacilda Becker/RJ.
SACRUM : IN ECSTATIC COMPASS, CONNECTING THE BODY TO THE EARTH AND THE SKY
Sacrum. Márcio Cunha, choreographic conception. August 2022. Photos/Carol Pires.
Sacro re-premieres in a second season, with another reinterpretation, from December 14 to 1, Thursday to Sunday, at 7 pm, at Teatro Cacilda Becker/RJ. "We are alive in 2024 and that is a lot. We are all connected by the air, the ground, and the sound around us. We live in a country where continuing to dance is an act of extreme courage and love." Giving vent to these words so necessary at a time when attacks on the necessary connection between art, man and the earth are increasingly recurrent, the performer, dancer and therapist Micheline Torres inspired the dramaturgical ideas of Márcio Cunha's newest choreographic creation. Symbolically titled Sacred, this dance-theater show also echoes a sacred link between the body and nature in a gravitational transcendence with cosmic energies through its performative representation. In the search for choreographic empathy corresponding to what the philosopher Merleau-Ponty calls the phenomenology of perception thus capable of enabling the "synesthetic interlacing" or sensory exchange between the artist/dancer and the spectator. It also echoes a choreographic propensity for the inventive search for natural movement that establishes a psychophysical awakening between the ambience of nature and human interiority. Which comes from his precursor/visionary Isadora Duncan, through names in postmodern dance, to contemporaries such as the Anglo/Pakistani, Akram Khan. Márcio Cunha is one of the most stubborn supporters of this trend, exemplarily shown in his latest scenic creations such as Rosário (2018) and Barro (2019), in addition to others of virtual experimentalism for pandemic times and now, in this Sacro in his return to the face-to-face stage. Making its aesthetic and choreographic conceptual prevalent in the surroundings of the cosmic encounter of man with the organic elements, in a dance in and by nature. Differential only by his non-participation, as usual, in the role of protagonist performer/solo dancer. But accumulating a triple artistic craft for its conception, direction, and scenic setting, having as interpreters recognized personalities of Brazilian contemporary dance, members of a potential generation of choreographers/dancers, namely Denise Stutz, Frederico Paredes and Giselda Fernandes. Spatially situated in an enveloping scenographic conception (Márcio Cunha) with chairs formatted like tree branches, in the plasticity of a landscape installation suggesting environmental elements, highlighted in luminary variations (Juca Baracho). Wearing the dancers an everyday outfit in shades of light predominance, by Karlla de Luca. Under an incidental soundtrack (Leonardo Miranda) based on fragmentary chords ranging from instrumental solos, such as an original piccolo transcription of the national anthem, to instantaneous excerpts from Bach or terreiro songs. Interspersed with the prevalence of forest sounds, wind noises, rains, and bird songs. The dancers' gestures, sometimes expressing the playful/sensorial experience of ecological issues, sometimes diving into the interiority of the self, in a palpable self-discovery of the physical and spiritual connection with oneself and with nature. From the dance initiated in a three-dimensional circle, three dancers as one body, engaged in the opening of metaphysical doors under meditative postures or energized in the activation of tensions in more abrupt movements. Alongside a theatrical facial mask between intuitive manifestations of joy or pain, in the challenge of the enigmas of the Sacred and in the face of the difficult support of the human condition and its terminal corporeality transmuted into an organic part of the soil. Emotionally integrating what could be called a choreographic "biomimicry" in this dance of Being with the Earth. In a transcendent drive capable of referring to the emblematic ideas of Martha Graham in believing that wherever a dancer steps is sacred ground...
Wagner Corrêa de Araújo Sacro re-premieres in a second season, with another reinterpretation, from December 14 to 1, Thursday to 7 pm, at Teatro Cacilda Becker/RJ.
LA FILLE MAL GARDÉE / BTM : ENVOLVENTE PANTOMIMA E CLASSICISMO PASTORAL NA RECONSTITUIÇÃO COREOGRÁFICA DE RICARDO ALFONSO
La Fille Mal Gardée. BTM/RJ. Ricardo Alfonso/Concepção Coreográfica. Agosto/2024. Fotos/Daniel Ebendinger. Videos/Daniel A. Rodrigues
No primeiro dia de julho, 1789, quase às vésperas da Revolução Francesa estreava em Bordeaux - La Fille Mal Gardée - que trazia um novo conceitual coreográfico por Jean Dauberval, sem príncipes e deuses mitológicos, com sua inspiração em temas e canções populares. E que, na trajetória histórica do repertório de balé clássico, acabou considerado um marco sinalizador. Ambientada no clima pastoril da propriedade rural da viúva Simone e sua filha Lise, onde seus personagens são camponeses e a trama idílica mostra a atração dela pelo lavrador Colas, indo na contramão do desejo de sua mãe em vê-la casada com o ingênuo Alain, filho de um rico fazendeiro. Espalhando-se, sequencialmente, por outros palcos e países antes de chegar à Ópera de Paris, na releitura musical de 1828, por Ferdinand Hérold que se tornaria, a partir daí, a partitura definitiva. Embora seguida por diferenciais versões coreográficas, entre as quais a de maior perenidade e representações, deve-se a Frederick Ashton, no Royal Ballet, em 1960. E é esta concepção que vem sugestionando, em suas linhas básicas, praticamente todas as remontagens deste balé, mesmo a do coreógrafo suiço Heinz Spoerli, que ele titula de nova versão, em 1981, e onde as revisões ocorrem mais em sua partitura original. Enquanto a direção concepcional/coreográfica do uruguaio Ricardo Alfonso, estreada em dezembro de 2023, e que é mostrada, agora, pelo Balé do Theatro Municipal carioca, continua mais próxima daquela de Frederick Ashton. Ricardo Alfonso integra o naipe de uma nova e reveladora geração coreográfica nos países da America Latina, tendo já uma vasta trajetória de obras suas, entre o repertório clássico e contemporâneo, com uma identidade autoral bem singularizada, entre a fidelidade à tradição e o espírito inovador. É o que ele demonstra muito bem neste seu olhar no entorno de La Fille Mal Gardée, imprimindo charme e simpatia à rusticidade natural de personagens campônios. Ao mesmo tempo em que enfatiza uma bem-humorada pantomima à burlesca representação da viúva Simone, sob a carismática teatralidade mimética do bailarino Edifranc Alves. Na continuidade do alcance de um brilho performático, o protagonismo dúplice de Cicero Gomes como Colas e de Márcia Jaqueline como Lise, o jovem casal em seu embate afirmativo de um amor recíproco, é o outro destaque absoluto pela química técnica e interpretativa nestes personagens. Cicero Gomes exorbitando, como de hábito em reconhecido virtuosismo, nos seus contagiantes solos entre jetés e piruetas. Ao lado de Márcia Jaqueline que completa vinte anos de estreia neste papel e que, cada vez, mais exerce fascínio por sua instintiva graça e seu refinado porte de uma primeira bailarina. Ambos, enfim, com altos dotes qualitativos tanto na demonstração de uma convicta pirotecnia, como na sua entrega a um timing cômico, das expressões faciais ao gestualismo na corporeidade. O que os faz completos atores/bailarinos em sintonia com um funcional sustento coreográfico dos outros integrantes do Corpo de Baile. Os figurinos sempre caprichados de Tania Agra destoam de uma cenografia (Manoel dos Santos) meramente convencional, sob luzes vazadas (Paulo Ornellas) com algumas raras variações entre sombras e claros na cena da tempestade no campo. O artesanal empenho da conduta do maestro Silvio Viegas frente à OSTM ressalta bem a leveza romântica e um caracter prevalente de allegros quase marciais, em energizados temas musicais, entremados por subliminares fraseados rossinianos. Valendo, antes de tudo, registrar o quanto é fundamental este intercâmbio com outras visões coreográficas, promovido por bela iniciativa do comando e supervisão artística (Hélio Bejani e Jorge Teixeira) do Balé do TM/RJ. Tal como a representividade do convite ao uruguaio Ricardo Alfonso, além de brasileiros como Ricardo Amarante, com coreografias suas idealizadas para a Cia Colombiana de Ballet que chegaram também ao palco do Municipal. Onde este acervo de criações voltadas às companhias latino - americanas, incluído o Brasil, possa reafirmar o potencial e o maior reconhecimento de um precioso panorama coreográfico destes países, mote de uma importante série de análises da conceituada crítica argentina Fatima Nollen (radicada em Londres) para a secular revista inglesa Dancing Times Magazine...
Wagner Corrêa de Araújo
La Fille Mal Gardée/BTM está em temporada no Theatro Municipal/RJ, desde o dia 15/08, com alternância nos elencos, até o próximo domingo, 25 de agosto, em horários diversos.
LA FILLE MAL GARDÉE / BTM: ENGAGING PANTOMIME AND PASTORAL CLASSICISM IN RICARDO ALFONSO'S CHOREOGRAPHIC RECONSTITUTION
La Fille Mal Gardée. BTM/RJ. Ricardo Alfonso/Choreographic Conception. August/2024. Photos/Daniel Ebendinger. Videos/ Daniel A. Rodrigues
On the first day of July 1789, almost on the eve of the French Revolution, La Fille Mal Gardée premiered in Bordeaux, which brought a new choreographic concept by Jean Dauberval, without princes and mythological gods, with its inspiration in popular themes and songs. And that, in the historical trajectory of the classical ballet repertoire, ended up being considered a signpost. Set in the pastoral atmosphere of the rural property of widow Simone and her daughter Lise, where the characters are peasants and the idyllic plot shows Lise’s attraction to the farmer Colas, going against her mother's desire to see her married to the naïve Alain, son of a rich farmer. Spreading, sequentially, to other stages and countries before reaching the Paris Opera, in the musical reinterpretation of 1828, by Ferdinand Hérold, which would become, from then on, the definitive score. Although followed by differential choreographic versions, including the one with greater perenniality and representations, it is due to Frederick Ashton, at the Royal Ballet, in 1960. And it is this conception that has been suggesting, in its basic lines, practically all the re-stagings of this ballet, even that of the Swiss choreographer Heinz Spoerli, which he titled a new version, in 1981, and where the revisions occur more in its original score. While the conceptional/choreographic direction of Uruguayan Ricardo Alfonso, premiered in December 2023, and which is now shown by the Ballet of the Municipal Theater of Rio de Janeiro, remains closer to that of Frederick Ashton. Ricardo Alfonso is part of a new and revealing choreographic generation in Latin American countries, having already a vast trajectory of his works, between the classical and contemporary repertoire, with a very unique authorial identity, between fidelity to tradition and innovative spirit. This is what he demonstrates very well in his look at the surroundings of La Fille Mal Gardée, imprinting charm and sympathy to the natural rusticity of peasant characters. At the same time, it emphasizes a humorous pantomime to the burlesque representation of the widow Simone, under the charismatic mimetic theatricality of the dancer Edifranc Alves. In the continuity of the achievement of a performative brilliance, the double protagonism of Cicero Gomes as Colas and Márcia Jaqueline as Lise, the young couple in their affirmative clash of reciprocal love, is the other absolute highlight for the technical and interpretative chemistry in these characters. Cicero Gomes exorbitating, as usual in recognized virtuosity, in his contagious solos between jetés and pirouettes. Alongside Márcia Jaqueline, who completes twenty years of debut in this role and who, more and more, is fascinated by her instinctive grace and her refined bearing of a prima ballerina. Both, finally, with high qualitative gifts both in the demonstration of a convinced pyrotechnics, and in their surrender to a comic timing, from facial expressions to gestures in corporeality. Which makes them complete actors/dancers in tune with a functional choreographic sustenance of the other members of the Corps de Ballet. Tania Agra's always neat costumes clash with a merely conventional scenography (Manoel dos Santos), under hollow lights (Paulo Ornellas) with some rare variations between shadows and light in the scene of the storm in the field. The artisanal commitment of maestro Silvio Viegas' conduct in front of the OSTM highlights well the romantic lightness and a prevalent character of almost martial allegos, in energized musical themes, interspersed with subliminal Rossinian phrasing. It is worthwhile, first of all, to register how fundamental this exchange with other choreographic visions is, promoted by a beautiful initiative of the command and artistic supervision (Hélio Bejani and Jorge Teixeira) of the TM/RJ Ballet. As well as the representativeness of the invitation to Uruguayan Ricardo Alfonso, as well as Brazilians such as Ricardo Amarante, with his choreographies idealized for the Colombian Ballet Company that also reached the stage of the Municipal. Where this collection of creations aimed at Latin American companies, including Brazil, can reaffirm the potential and greater recognition of a precious choreographic panorama of these countries, the motto of an important series of analyses by the renowned Argentine critic Fatima Nollen (based in London) for the secular English magazine Dancing Times Magazine...
La Fille Mal Gardée/BTM is in season at Theatro Municipal/RJ, from 08/15, with alternation in the casts, until next Sunday, August 25, at different times.
BOCA DO MUNDO : CELEBRAÇÃO RITUALÍSTICA DA CORPOREIDADE, NUM COMPASSO DE AFRO BRASILIDADE
Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires 80 leve
Boca do Mundo é a mais recente incursão do artista plástico, performer atoral e bailarino Márcio Cunha. E que também tem, agora, sua diferencial trajetória artística e processo criador decifrados no envolvente doc filme de Guto Neto titulado Impermanência. Desde o incisivo teor inventivo de seu tríptico inspirado na obra de Frida Kahlo, Jean-Michel Basquiat e Arthur Bispo do Rosário, a Márcio Cunha Dança Contemporânea vem imprimindo uma original conexão estética em suas criações estabelecendo liames entre a coreografia, a performance teatral e as instalações plásticas. Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires Continuadas em potenciais concepções conceituais como foi o caso de Barro, sob a manipulação em cena deste material geológico - o que me fez lembrar a artista e ceramista Celeida Tostes em uma de suas viscerais propostas ao vivo – “Cobri meu corpo de barro e fui / Entrei no bojo do escuro/ventre da terra”. Ambos despojando-se, através desta ação de um teatro-dança, de sua natural fisicalidade direcionando-se a uma transmutação metafórica em formas escultóricas primitivas, incorporando o ser e o não ser ancestral, céu e terra, com um olhar no futuro. Enquanto em Basquiat, impulsionando um ser revolto com acordes hip hop e jazzísticos entremeadas por black spirituals, ele sugestiona um espaço mágico preenchido por referências plásticas, integrando em sua psicofisicalidade “um jovem artista negro num mundo de arte branco”. E no caso de Rosário reinventando num sotaque com traços subliminares de Artaud a Pina Bausch, outro artista - este brasileiro - sob o signo da marginalidade, na sua corporificação de um refém da alienação, completada na participação inclusiva – física e vocal - de um dos ex-internos dos tempos da Colônia Juliano Moreira. Mostrando um dos caracteres mais marcantes do ideário de luta poliideológica de Marcio Cunha que é seu sensorial apelo por uma inserção composicional entre o corpo e a natureza, em época de tanto descaso pela preservação de nossas reservas biológicas e florestais, surge Sacro. Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires Onde o múltiplo artista, outra vez próximo de uma proposta de dança-teatro, faz apenas a direção concepcional, coreográfica e cenográfica, no simbolismo do risco de uma catástrofe ambiental através de galhos secos. E na performance trazendo nomes referenciais da dança brasileira de hoje (Denise Stutz, Frederico Paredes e Giselda Fernandes). Para, depois do tributo ao seu pai Mestre de Capoeira (de quem aprendeu este ofício), em Pipoca, apresentar seu mais recente espetáculo Boca do Mundo. Aqui voltando à caixa cênica, pela ambientação a partir de materiais elucidativos da tradição popular ritualística do universo dos terreiros, das rodas de capoeira e do culto a personagens do Candomblé, como Exu e os Orixás. E por sua energizada atuação, ao lado de uma também vigorosa performer/bailarina Carla Stank, ambos entregues a um convicto jogo cênico vivo de espontâneo gestualismo, por vezes caracterizado por injunções poéticas, ou então por uma duplice imersão brincante na autenticidade popular da capoeiragem. Ampliado na mascaração com referenciais figurativos da tradição dos ritos originários de uma aculturação de crenças afro-brasileiras, sempre dimensionadas pela adequação sonora de ritmos percussivos típicos. E pela figuração de um expressionismo entre o burlesco, o histrionismo gestual e o terrir de bocas escancaradas e olhares esbugalhados. Sem nunca quebrar a pulsão imaginária de um artesanal manipulador de variadas linguagens inventivas que, entre o lúdico e o reflexivo evoca o desafio da Impermanência (no tão a propósito nome do esclarecedor filme de Guto Neto) da condição humana, no seu eterno conflito entre as alegrias e os desafetos da vida e sua finitude. Como se a visão fílmica da inspiradora trajetória da Márcio Cunha Dança Contemporânea fizesse ecoar, também, em suas manifestações estéticas da corporeidade, o emblemático grito de Frida Kahlo : “Meu corpo carrega em si todas as dores do mundo”...
Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires
Wagner Corrêa de Araújo Boca do Mundo/Marcio Cunha Dança Contemporanea faz curta temporada no Teatro da UFF/Niterói, dias 17 e 18, às 19h; sábado, 19/07, às 20h. Impermanência, filme de Guto Neto, será exibido na Mostra Cavideo, terça 22 de julho, às 21hs, no Estação Net Rio/Botafogo.
Video: By Guto Neto
MOUTH OF THE WORLD: RITUALISTIC CELEBRATION OF CORPOREALITY, IN A RHYTHM OF AFRO-BRAZILIANNESS
Bocado Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires
Boca do Mundo is the most recent incursion by the artist, actor performer and dancer Márcio Cunha. And which also now has its differential artistic trajectory and creative process deciphered in the engaging doc film by Guto Neto entitled Impermanence. From the incisive inventive content of its triptych inspired by the work of Frida Kahlo, Jean-Michel Basquiat and Arthur Bispo do Rosário, Márcio Cunha Contemporary Dance has been imprinting an original aesthetic connection in its creations, establishing links between choreography, theatrical performance, and plastic installations. Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires Continued in potential conceptual conceptions as was the case of Barro, under the manipulation on stage of this geological material - which reminded me of the artist and ceramist Celeida Tostes in one of her visceral live proposals - "I covered my body with clay and went / I entered the bulge of the dark / womb of the earth". Both divesting themselves, through this action of a dance-theater, of their natural physicality, directing themselves to a metaphorical transmutation into primitive sculptural forms, incorporating ancestral being and non-being, heaven, and earth, with a look at the future. While in Basquiat, propelling a rebellious being with hip hop and jazzy chords interspersed with black spirituals, he suggests a magical space filled with plastic references, integrating in his psychophysicality "a young black artist in a white art world". And in the case of Rosário reinventing in an accent with subliminal traits from Artaud to Pina Bausch, another artist - this one Brazilian - under the sign of marginality, in his embodiment of a hostage of alienation, completed in the inclusive participation - physical and vocal - of one of the former inmates from the times of the Colony Juliano Moreira. Showing one of the most striking characteristics of Marcio Cunha's ideas of polyideological struggle, which is his sensorial appeal for a compositional insertion between the body and nature, at a time of so much disregard for the preservation of our biological and forest reserves, Sacro emerges. Boca do Mundo no Futuros em alta Foto Carol Pires Where the multiple artist, again close to a dance-theater proposal, does only the conceptional, choreographic and scenographic direction, in the symbolism of the risk of an environmental catastrophe through dry branches. And in the performance bringing reference names of today's Brazilian dance (Denise Stutz, Frederico Paredes and Giselda Fernandes). To, after the tribute to his father Mestre de Capoeira (from whom he learned this craft), in Pipoca, present his most recent show Boca do Mundo. Here returning to the scenic box, for the setting from elucidative materials of the ritualistic popular tradition of the universe of terreiros, capoeira circles and the cult of Candomblé characters, such as Exu and the Orixás. And for his energized performance, alongside an also vigorous performer/dancer Carla Stank, both given over to a convinced live scenic game of spontaneous gesturalism, sometimes characterized by poetic injunctions, or by a double playful immersion in the popular authenticity of capoeiragem. Amplified in the masking with figurative references of the tradition of rites originating from an acculturation of Afro-Brazilian beliefs, always dimensioned by the sound adequacy of typical percussive rhythms. And by the figuration of an expressionism between burlesque, gestural histrionics and the terrir of gaping mouths and bulging looks. Without ever breaking the imaginary drive of an artisanal manipulator of various inventive languages that, between the playful and the reflective, evokes the challenge of the Impermanence (in the so appropriate name of Guto Neto's enlightening film) of the human condition, in its eternal conflict between the joys and disaffections of life and its finitude. As if the filmic vision of the inspiring trajectory of Márcio Cunha Contemporary Dance also echoed, in its aesthetic manifestations of corporeality, the emblematic cry of Frida Kahlo: "My body carries in itself all the pains of the world"...
Wagner Corrêa de Araújo Boca do Mundo/Marcio Cunha Contemporary Dance has a short season at the UFF Theater/Niterói, on the 17th and 18th, at 7 pm; Saturday, 07/19, at 8 pm. Impermanence, a film by Guto Neto, will be screened at Mostra Cavideo, Tuesday, July 22, at 9 pm, at Estação Net Rio/Botafogo.
FOCUS CIA / ENTRE A PELE E A ALMA : NA DECIFRAÇÃO COREOGRÁFICA DO ENIGMÁTICO UNIVERSO DE BOSCH
Entre a Pele e a Alma Focus Cia de Dança crédito Leo Aversa
Há mais de meio milênio a criação artística do holandês Hyeronymus Bosch vem desafiando pelas suas intrigantes criações pictóricas, numa representação de cenas ora bizarras, ora plenas de lascividade, na passagem entre a era medieval e o renascimento. E não é por mero acaso que seu tríptico - O Jardim das Delícias - tornou-se, assim, a maior atração do Museu do Prado (Madrid), seja para espectadores conservadores ou mentes mais libertárias, imergindo todos no provocante fascínio sagrado e profano de sua proposta estética. Caso do coreógrafo Alex Neoral quando, sob a pulsão presencial expressiva desta emblemática pintura, decidiu que ela seria o signo conceitual e propulsor de sua próxima concepção inventiva para a Focus Cia de Dança, titulando a obra, muito a propósito, de Entre o Corpo e a Alma. Entre a Pele e a Alma Focus Cia de Dança crédito Leo Aversa Não reproduzindo meramente o impacto causado pelo painel central, o Jardim das Delícias, ladeado por dois outros mostrando o Inferno e o Paraíso. Mas procurando reinterpretá-los à luz de um olhar visionário que sugestione, através de uma visceral performance dos nove integrantes da Cia, sua permanente conexão com os avanços coreográficos da contemporaneidade. Onde um revelador design cenográfico (Natália Lana), acentuado por potenciais efeitos luminares (Anderson Ratto), priorizando tecidos aquarelados fracionados em tiras frontais móveis, serve às entradas e saídas de elenco numa plasticidade que induzisse à decifração dos mistérios pastorais e eróticos, entre o céu e a terra, o inferno e o paraíso. Em coesiva atuação de uma convicta corporeidade dançante no uso de várias peças indumentárias que, em suas franjas ou por brilhos resplandecentes, remetem a figurinos dos shows de Ney Matogrosso. Cuja trajetória transgressiva, como cantor performático, torna-se, aqui, um elo metafórico com a luxuriosa figuração dos personagens de Bosch. Entre a Pele e a Alma Focus Cia de Dança crédito Leo Aversa Não só através dos caracteres de um sensualizado comportamental cênico/coreográfico dos bailarinos, como pela envolvência poética de uma trilha autoral inédita. Poética e instrumental (Paula Raia e Sacha Amback), ora recitativa, numa voz atoral de Lucinha Lins, ou cantada por Ney Matogrosso, sob instintiva remissão ao diferencial sotaque que o celebrizou. Na concepção do enredo que, sobretudo, levou Alex Neoral a se empenhar no entorno desta sua mais recente criação coreográfica, há a incidência afetiva de alguns fatores que marcaram sua ascensão como um dos nomes mais referenciais da dança em moldes brasileiros. A primeira é o apelo carismático que desde sua infancia foi exercido pelas imagens de um Ney Matogrosso soltando-se no seu espontâneo jeito rebolativo, em exibições televisivas. Completada por uma progressiva carreira como bailarino, coreógrafo, criador e diretor da Focus Cia que agora completa três décadas, sem esquecer que ele foi, sequencialmente, se notabilizando por uma singular linguagem estética / coreográfica. Além de transitar pela brasilidade musical/gestual de suas criações que levaram-no a ser um dos mais solicitados diretores de comissões de frente das escolas de samba cariocas. Fazendo, neste atual espetáculo, um conexo tributo à festa popular das alegrias “pagãs” com o Jardim das Delícias Terrenas. Uma dinâmica energizada sendo imprimida por ele à corporeidade psicofísica dos bailarinos neste ritual celebrativo do prazer dos sentidos, livre da culpa do pecado e longe de uma falsa moralidade apregoada, cada vez mais, pelos fanatismos religiosos. Sabendo, assumidamente, como vivenciar e conciliar o movimento direcionado ao encontro, sem preconceitos, da pureza e da sexualidade, num mundo paradisíaco “Entre a Pele e a Alma”. Ecoando em processo reflexivo-especular nos líricos versos de uma das canções de Paula Raia para a voz luminosa de Ney : “Num gramado infinito / De Lagos azuis / Morangos gigantes / Bichos homens nus / Paraíso invertido / Metade de mim / Frutos proibidos / Delicioso jardim / Todos esculpiam / O pecado com as mãos / A luxúria lasciva e o perdão...” Wagner Corrêa de Araújo
Entre a Pele e a Alma/Focus Cia de Dança estreou no Theatro Municipal/RJ, de sexta 28/06 a domingo, 30 / julho.
FOCUS CIA / BETWEEN THE SKIN AND THE SOUL: IN THE CHOREOGRAPHIC DECIPHERMENT OF BOSCH'S ENIGMATIC UNIVERSE
For more than half a millennium, the artistic creation of the Dutchman Hyeronymus Bosch has been challenging for his intriguing pictorial creations, in a representation of scenes sometimes bizarre, sometimes full of lasciviousness, in the passage between the medieval era and the Renaissance. And it is no coincidence that his triptych - The Garden of Delights - has thus become the Prado Museum's greatest attraction (Madrid), whether for conservative spectators or more libertarian minds, immersing everyone in the provocative sacred and profane fascination of its aesthetic proposal. This is the case of choreographer Alex Neoral when, under the expressive face-to-face impulse of this emblematic painting, he decided that it would be the conceptual and propelling sign of his next inventive conception for Focus Cia de Dança, titling the work, very appropriately, Between the Body and the Soul. Entre a Pele e a Alma Focus Cia de Dança crédito Leo Aversa Not merely reproducing the impact caused by the central panel, the Garden of Delights, flanked by two others showing Hell and Paradise. But seeking to reinterpret them in the light of a visionary look that suggests, through a visceral performance by the nine members of the company, their permanent connection with the choreographic advances of contemporaneity. Where a revealing scenographic design (Natália Lana), accentuated by potential luminary effects (Anderson Ratto), prioritizing watercolor fabrics fractionated in movable front strips, serves the entrances, and exits of the cast in a plasticity that would induce the deciphering of the pastoral and erotic mysteries, between heaven and earth, hell, and paradise. In a cohesive performance of a convinced dancing corporeality in the use of various garments that, on their fringes or by resplendent sparkles, refer to costumes from Ney Matogrosso's shows. His transgressive trajectory, as a performance singer, becomes, here, a metaphorical link with the lustful figuration of Bosch's characters. Not only through the characters of a sensualized scenic/choreographic behavior of the dancers, but also through the poetic involvement of an unprecedented authorial score. Poetic and instrumental (Paula Raia and Sacha Amback), sometimes recitative, in an actorial voice by Lucinha Lins, or sung by Ney Matogrosso, under instinctive reference to the distinctive accent that made him famous. In the conception of the plot that, above all, led Alex Neoral to engage in the surroundings of his most recent choreographic creation, there is the affective incidence of some factors that marked his rise as one of the most referential names in dance in Brazilian molds. The first is the charismatic appeal that since his childhood has been exerted by the images of a Ney Matogrosso letting loose in his spontaneous rolling way, in television exhibitions. Completed by a progressive career as a dancer, choreographer, creator, and director of Focus Cia that now completes three decades, without forgetting that he was, sequentially, notable for a singular aesthetic / choreographic language. In addition to transiting through the musical/gestural Brazilianness of his creations that led him to be one of the most requested directors of front committees of Rio de Janeiro's samba schools. Making, in this current show, a connected tribute to the popular festival of "pagan" joys with the Garden of Earthly Delights. An energized dynamic being imprinted by him on the psychophysical corporeality of the dancers in this ritual celebrating the pleasure of the senses, free from the guilt of sin and far from a false morality proclaimed, more and more, by religious fanaticisms. Knowing, admittedly, how to experience and reconcile the movement directed to the encounter, without prejudice, of purity and sexuality, in a paradisiacal world "Between the Skin and the Soul". Echoing in a reflective-specular process in the lyrical verses of one of Paula Raia's songs for Ney's luminous voice: "On an infinite lawn / Of blue lakes / Giant strawberries / Naked male animals / Inverted paradise / Half of me / Forbidden fruits / Delicious garden / Everyone sculpted / Sin with their hands / Lustful lust and forgiveness..." Wagner Corrêa de Araújo
Entre a Pele e a Alma/Focus Cia de Dança premiered at Theatro Municipal/RJ, from Friday 28/06 to Sunday, 30 / July.
AMAZÔNIA / GRUPO DE DANÇA DC : SOB A SURPRESA DA VOLTA AOS PALCOS DE UMA MEMÓRAVEL CIA CARIOCA
Amazônia / Grupo de Dança DC Photos by Wagner Brum
No final dos anos 80 um grupo de bailarinos solistas do Theatro Municipal/RJ teve a idéia de criar uma Cia de dança voltada para uma linguagem contemporânea conectada à sólida base clássica de seus integrantes. Com o diferencial de sua proposta começando já na própria denominação Grupo de Dança DC – Díssidio Coletivo, com um subliminar significado estético-social. A partir de 1987, desde a sua estuturação tendo como mentor concepcional/coreográfico o conceituado bailarino João Wlamir, o Grupo DC desenvolveu uma vitoriosa trajetória em inúmeras turnês brasileiras que se estenderam a apresentações em palcos e festivais internacionais. Sempre com o aplauso da crítica e o sucesso de público, mais a participação, como convidados em alguns espetáculos, de nomes solistas fundamentais da dança clássica em moldes nacionais, entre outros, Ana Botafogo, Nora Esteves, Cecília Kerche, Auréa Hammerli, Francisco Timbó, Paulo Rodrigues. Desenvolvendo um repertório original que incluía incursões de sotaque neoclássico, releituras de obras contemporâneas e a priorização de temáticas plenas de brasilidade, em criações de grande força como A.M.O.R, Rio 24 Horas, 16 Minutos Depois, esta última inspirada no Bolero de Ravel, para terminar esta sua luminosa viagem pelos caminhos coreográficos nacionalistas com Cores do Brasil, em 2014. E, agora, ao completar dez anos de ausência, na volta aos palcos com a obra inédita AmazôniA, numa tríplice parceria criativa incluindo, além do próprio João Wlamir, Jaime Bernardes e Mônica Barbosa, com bravura e ousadia para enfrentar o desafio de tempos ainda difíceis para captação de patrocínios, especialmente para as artes cênicas. Num valioso empenho pela descoberta de talentos emergentes para integrarem, inicialmente, o novo staff da DC após uma década de sentido interregno. Todos os oito escolhidos, criteriosamente, em processo seletivo, seguindo-se um extensivo período de preparação e ensaios, desde o inicio de 2024. Desta vez, para tornar visível, cênica e gestualmente, uma imersão na ambiência mágica da Amazônia resignificada coreograficamente, como emblemático signo pulmonar do mundo, na vastidão de seu verde florestal e na potencialidade de maior reserva ecológica do planeta Terra. Onde a paisagem cenográfica (Orlando Sérgio) tem um belo alcance na abstrata representação plástica frontal de sua vegetação, ampliando-se na habitual expressividade imprimida pelos efeitos luminares de Paulo César Medeiros. Incidindo sobre a funcional tipicidade da indumentária (João Paulo Bertini), com tons indigenistas, traços de folclorismo nortista e artesania popular. Havendo também a prevalência de sonoridades percussivas na maioria das composições da trilha (Branco Fereira), desde o ritualismo afro-indigenista, acentuado pelas intervenções de um orixá, ao regionalismo musical, com seu referencial de frases dos gêneros carimbó, sertanejo e forró. Além das citações de temas de Bethania, Chico Science e até do Sepultura. Os nove bailarinos, a maioria se destacando na fluidez de sua corporeidade dançante, resultado natural de um elenco recém-formado, sob as exigências maiores ou menores de certos quadros, enquanto alguns demonstram certa insegurança em suas contrações performáticas outros são mais incisivos em sua dramaturgia da fisicalidade. Mas o convicto comando concepcional sem jamais perder a singularidade da proposta de um vocabulário do movimento figurando situações sócio-ambientais com personagens que remetem, tanto aos povos originários como aos atuais segmentos populacionais, incluindo da diversidade sexual à exploração insensata da própria floresta. Onde a súbita mudança de compasso com a entrada, no epílogo, das energizadas interveniências do minimalismo musical de Philip Glass, provocam um angustiado grito de alerta, palco/plateia, e de denúncia global para que não se deixe perder de vez a urgente preservação da poesia e da vida daquele Paraíso na Terra ... Wagner Corrêa de Araújo
AmazôniA/Grupo de Dança DC está em cartaz no Teatro Prio/Gávea, em curta temporada, de quinta a sábado, 20h; domingo, às 19h, até domingo 30 de junho.
AMAZÔNIA / DC DANCE GROUP: UNDER THE SURPRISE OF THE RETURN TO THE STAGE OF A MEMORABLE CIA CARIOCA
At the end of the 80's, a group of solo dancers from the Theatro Municipal/RJ had the idea of creating a dance company focused on a contemporary language, connected to the solid classical base of its members. With the differential of its proposal starting already in the name DC Dance Group – Collective Division, with a subliminal aesthetic-social meaning. From 1987 onwards, since its structuring with the renowned dancer João Wlamir as its conceptual/choreographic mentor, the DC Group has developed a victorious trajectory in numerous Brazilian tours that have extended to presentations on stages and international festivals. Always with the applause of the critics and the success of the public, plus the participation, as guests in some shows, of fundamental soloist names of classical dance in national molds, among others, Ana Botafogo, Nora Esteves, Cecília Kerche, Auréa Hammerli, Francisco Timbó, Paulo Rodrigues. Developing an original repertoire that included incursions of neoclassical accent, reinterpretations of contemporary works and the prioritization of themes full of Brazilianness, in creations of great strength such as A.M.O.R, Rio 24 Horas, 16 Minutes Later, the latter inspired by Ravel's Bolero, to end his luminous journey through the nationalist choreographic paths with Cores do Brasil, in 2014. And now, after completing ten years of absence, in the return to the stage with the unpublished work AmazôniA, in a triple creative partnership including, in addition to João Wlamir himself, Jaime Bernardes and Mônica Barbosa, with bravery and boldness to face the challenge of still difficult times to attract sponsorships, especially for the performing arts. In a valuable effort to discover emerging talents to initially join DC's new staff after a decade of long interregnum. All eight were carefully chosen in a selection process, followed by an extensive period of preparation and rehearsals, since the beginning of 2024. This time, to make visible, scenically, and gesturally, an immersion in the magical ambience of the Amazon re-signified choreographically, as an emblematic lung sign of the world, in the vastness of its forest green and in the potential of the largest ecological reserve on planet Earth. Where the scenographic landscape (Orlando Sérgio) has a beautiful scope in the abstract frontal plastic representation of its vegetation, expanding in the usual expressiveness imprinted by the luminary effects of Paulo César Medeiros. Focusing on the functional typicity of clothing (João Paulo Bertini), with indigenist tones, traces of northern folklorism and popular craftsmanship. There is also the prevalence of percussive sonorities in most of the compositions of the soundtrack (Branco Fereira), from the Afro-indigenist ritualism, accentuated by the interventions of an orixá, to musical regionalism, with its reference of phrases from the carimbó, sertanejo and forró genres. In addition to the quotes of themes from Bethania, Chico Science and even Sepultura. The nine dancers, most of them stand out in the fluidity of their dancing corporeality, a natural result of a newly formed cast, under the greater or lesser demands of certain cadres, while some demonstrate a certain insecurity in their performative contractions, others are more incisive in their dramaturgy of physicality. But the convinced conceptual command without ever losing the singularity of the proposal of a vocabulary of the movement figuring socio-environmental situations with characters that refer both to the original peoples and to the current population segments, including from sexual diversity to the senseless exploitation of the forest itself. Where the sudden change of time signature with the entrance, in the epilogue, of the energized interventions of Philip Glass's musical minimalism, provoke an anguished cry of warning, stage/audience, and global denunciation so that the urgent preservation of the poetry and life of that Paradise on Earth is not lost once and for all... Wagner Corrêa de Araújo
AmazôniA/Grupo de Dança DC is playing at Teatro Prio/Gávea, in a short season, from Thursday to Saturday, 8 pm; Sunday at 7 p.m. until Sunday, June 30.
ST TRAGÉDIAS - PAIXÃO E TÉCNICA COREOGRÁFICA UNEM SHAKESPEARE E TCHAIKOVSKY
“Se a música é o alimento do amor, continue tocando/. Dá-me o excesso que, farto/ O apetite pode adoecer e assim morrer” (William Shakespeare). O substrato poético/metafórico da palavra shakespeariana vai além da realidade fazendo com que a ação dramatúrgica se torne também gesto e dança. O que levou também a uma íntima e constante conexão estética de seu teatro com a música transmutada em coreografia. Onde as prevalentes versões da fatídica paixão de Romeu e Julieta são seguidas pela simbologia trágica de Othello, com sua visceral abordagem do ciúme, ambição, misoginia e racismo. Sem falar nas outras adaptações frequentes de A Megera Domada e Sonhos de Uma Noite de Verão. ST Tragédias, é um espetáculo idealizado por Ana Botafogo e Marcelo Misailidis, ambos com brilhante trajetória na dança clássica como primeiros bailarinos, tendo como enfoque reunir duas criações coreográficas de Misailidis, sob uma linguagem neoclássica em inventiva proposta cenográfica sob temas do teatro de Shakespeare ligados à música de Tchaikovsky. Com a participação dos primeiros bailarinos do Royal Ballet – Matthew Ball e Mayara Magri – em Romeu e Julieta, na estréia da obra em 2022, e agora, em 2024, com os nomes estelares do Balé do Teatro Cólon – Federico Fernandéz e Eliana Figueroa. Além de um destacado elenco de primeiros solistas em Othello. A saber, Márcia Jacqueline, primeira bailarina do Ballet do Theatro Municipal/RJ, como uma interiorizada Desdemona, Edifranc Alves, também primeiro solista nesta Cia clássica, atuando como um rompante Othello e Márcio Jahú, de referencial carreira independente na dança contemporânea, no papel de um ferino Iago, ao lado de mais sete competentes bailarinos da cena carioca. O compositor russo escreveu três poemas sinfônicos a partir do bardo inglês, a saber as Aberturas Fantasia - Hamlet, A Tempestade e Romeu e Julieta. Sendo esta última, cenicamente utilizada como um pas-de-deux entre os protagonistas titulares, sintetizando a trama dramática em seus aspectos básicos. Aqui, pelo uso da composição sinfônica em sua integridade, na inicialização do espetáculo. Na alternância de quatro carismáticos intérpretes e primeiros bailarinos do Royal Ballet e do Teatro Cólon, sabendo priorizar, com expressiva entrega emotivo-gestual, uma irrepreensível técnica no entremeio do neoclássico com um sotaque de contemporaneidade. Sempre com o desafio de imprimir uma dramaturgia da corporeidade transmutando o significado shakespeariano através de um sensorial vocabulário do movimento e da gestualidade. O que a concepção cênico/coreográfica de Marcelo Misailidis viabiliza, com raro apuro artesanal, no seu empenho para traduzir este dimensionamento não verbal. Direcionado ainda ao mais ousado enfrentamento da adaptação de Othello para dez bailarinos, representando a totalidade dos personagens de um intricado e extenso jogo circular de teatralidade. A ser contado nos limites temporais do outro poema sinfônico de Tchaikovsky (no caso, Francesca da Rimini, este sem ligação nominal/temática com Shakespeare). Mas capaz de sustentar, concisamente nos seus potenciais acordes, as alternâncias emocionais das sucessivas metáforas de uma narrativa de movimento, tornando perceptíveis as palavras dançadas sem estar rigorosamente preso à literalidade textual da tragédia. Na especular representação de personagens em compasso de um teatro coreográfico, ampliado nos recursos de uma caixa cênica preenchida com um funcional jogo de elementos móveis, de dúplice atributo inventor (Misailidis), com a valiosa colaboração de Ana Botafogo, remanejados ao som de quatro lúdicos Estudos Pianísticos de Tchaikovsky, dando original sustento musical às mudanças cenográficas entre a primeira e a segunda obra. Com a manipulação tonal da iluminação (Paulo Cesar Medeiros), ressaltando a elegância discricionária e sensitiva dos figurinos (Ney Madeira) de Romeu e Julieta e a prevalência de cores rubras nas indumentárias (João Paulo Bertini) com um referencial sanguíneo remetendo aos arroubos da violência em Othello. ST Tragédias é, enfim, uma obra luminosa para tempos de crise político/cultural e referencial diante de uma crescente onda feminicida. Capaz de seduzir a plateia, além de apontar novos caminhos para a dança carioca, por sua linguagem cênico/corporal de caráter visionário, sabendo como escapar à acomodação e à carência qualitativa de algumas de nossas mais tradicionais companhias oficiais de dança...
Wagner Corrêa de Araújo ST Tragédias. Espetáculo coreográfico de Marcelo Misailidis e Ana Botafogo. Fotos/Vitor Melo.
ST TRAGEDIES - PASSION AND CHOREOGRAPHIC TECHNIQUE UNITE SHAKESPEARE AND TCHAIKOVSKY
"If music is the food of love, keep playing/. Give me the excess that, fed up/ Appetite can get sick and so die" (William Shakespeare). The poetic/metaphorical substratum of the Shakespearean word goes beyond reality, making the dramaturgical action also become gesture and dance. This also led to an intimate and constant aesthetic connection between his theater and music transmuted into choreography. Where the prevalent versions of Romeo and Juliet's fateful passion are followed by the tragic symbology of Othello, with its visceral approach to jealousy, ambition, misogyny, and racism. Not to mention the other frequent adaptations of The Taming of the Shrew and A Midsummer Night's Dream. ST Tragedies is a show conceived by Ana Botafogo and Marcelo Misailidis, both with a brilliant trajectory in classical dance as first dancers, focusing on bringing together two choreographic creations by Misailidis, under a neoclassical language in an inventive scenographic proposal under themes from Shakespeare's theater linked to Tchaikovsky's music. With the participation of the Royal Ballet's prima ballerinas – Matthew Ball and Mayara Magri – in Romeo and Juliet, at the premiere of the work in 2022, and now, in 2024, with the stellar names of the Teatro Colón Ballet – Federico Fernandéz and Eliana Figueroa. In addition to an outstanding cast of first soloists in Othello. Namely, Márcia Jacqueline, prima ballerina of the Ballet do Theatro Municipal/RJ, as an interiorized Desdemona, Edifranc Alves, also first soloist in this classical Company, acting as a bursting Othello and Márcio Jahú, with a referential independent career in contemporary dance, in the role of a ferocious Iago, alongside seven other competent dancers from the carioca scene. The Russian composer wrote three symphonic poems from the English bard, namely the Fantasia Overtures - Hamlet, The Tempest, and Romeo and Juliet. The latter being scenically used as a pas-de-deux between the titular protagonists, synthesizing the dramatic plot in its basic aspects. Here, by the use of symphonic composition in its entirety, at the beginning of the show. In the alternation of four charismatic performers and prima ballerinas of the Royal Ballet and the Colon Theatre, knowing how to prioritize, with expressive emotive-gestural delivery, an irreproachable technique in the midst of the neoclassical with an accent of contemporaneity. Always with the challenge of imprinting a dramaturgy of corporeality, transmuting the Shakespearean meaning through a sensorial vocabulary of movement and gestures. This is what Marcelo Misailidis' scenic/choreographic conception makes possible, with rare craftsmanship, in his effort to translate this non-verbal dimensioning. Directed also to the most daring confrontation of the adaptation of Othello for ten dancers, representing the totality of the characters of an intricate and extensive circular game of theatricality. To be told within the temporal limits of Tchaikovsky's other symphonic poem (in this case, Francesca da Rimini, this one with no nominal/thematic connection to Shakespeare). But capable of sustaining, concisely in its potential chords, the emotional alternations of the successive metaphors of a narrative of movement, making the danced words perceptible without being strictly bound to the textual literalness of the tragedy. In the specular representation of characters in the rhythm of a choreographic theater, amplified in the resources of a scenic box filled with a functional game of movable elements, of multiple inventor attribute (Misailidis), with the valuable collaboration of Ana Botafogo, rearranged to the sound of four playful Tchaikovsky Piano Studies, giving original musical support to the scenographic changes between the first and second work. With the tonal manipulation of the lighting (Paulo Cesar Medeiros), emphasizing the discretionary and sensitive elegance of the costumes (Ney Madeira) of Romeo and Juliet and the prevalence of red colors in the costumes (João Paulo Bertini) with a blood reference referring to the raptures of violence in Othello. ST Tragedies is, in short, a luminous work for times of political/cultural crisis and referential in the face of a growing feminicidal wave. Capable of seducing the audience, in addition to pointing out new paths for carioca dance, for its visionary scenic/body language, knowing how to escape the accommodation and qualitative lack of some of our most traditional official dance companies...
Wagner Corrêa de Araújo ST Tragedies. Choreographic show by Marcelo Misailidis and Ana Botafogo. Photos/Vitor Melo.
GRUPO CORPO : INSTIGANTE INVENTIVIDADE GESTUAL ENTRE A URBANIDADE DE “CORPO” E O REGIONALISMO DE “PARABELO”
Grupo Corpo Parabelo - crédito Sharen Bradford
Prestes a completar seu meio centenário o Grupo Corpo continua a expandir sua potencial singularidade como um das mais inventivas Cias de dança contemporânea do Brasil. Capaz, sempre, de continuar surpreendendo mesmo na retomada de coreografias antigas de seu repertório, como é o caso destas tituladas como Corpo e Parabelo, respectivamente criações dos anos 2000 e 1997. Sabendo como bem explorar o conluio de recursos cênicos, da iluminação aos figurinos, a favor de uma energizada e interativa corporeidade dançante que nunca deixa a desejar na sua busca por um perfeccionismo técnico na unicidade performática de seus bailarinos. A partir, sempre, da peculiar gramática coreográfica estabelecida pelo ideário concepcional de Rodrigo Pederneiras. Dentro de um dimensionamento estético/coreográfico a prevalência temática do Grupo Corpo se apoiando em permanente brasilidade que aparece, ali, desde 1976, com a obra propulsora da fama da Cia, Maria Maria, inspirada nas composições de Milton Nascimento, sendo esta sua estreia visionária, inicializada pela lavra do coreógrafo argentino Oscar Araiz. Grupo Corpo O Corpo Credito Jose Luiz Pederneiras Na travessia histórica do grupo muitas foram estas incursões por trilhas de compositores da MPB, numa especificidade que se desenvolveu por intermédio da participação direta dos músicos autores na sua montagem, paralela à arquiteturação cênica/coreográfica dos espetáculos. Em peças antológicas da Cia mineira caso, entre outras, como Corpo, por Arnaldo Antunes, ou através da parceria Tom Zé e Miguel Wisnik, em Parabelo. A primeira delas - Corpo - estruturada sob acordes de prevalência percussiva, com base composicional tecno-eletroacústica, para um texto recortado verbalmente como um poema concretista, sinalizado nos leitmotivs de palavras e frases vocalizadas (pé /mão /pé /mão – mão/ umbigo / braço) indutoras de vigoroso gestual mecânico/robótico dos bailarinos. Onde a indumentária (Freusa Zechmmeister e Fernando Velloso) de malhas negras referencia um quadro cênico e luminar (Paulo Pederneiras) de tonalidades futuristas, preenchido virtualmente pelo piscar de luzes de um painel eletrônico, através de um movimentar-se diferencial capaz de sugestionar “esse composto de ossos, carne sangue órgãos músculos nervos unhas e pelos”. Enquanto Parabelo dá um salto da realidade urbana para o sertanismo, naquela que seu próprio coreógrafo (Rodrigo Pederneiras) considera a sua obra de mais plena brasilidade, a partir de uma abordagem estética/regionalista da fome nordestina. E da sua resistência, na pulsão de crenças populares e religiosas, pelo desafio para sobreviver à insólita paisagem do agreste. A peça tendo um componente icônico em sua trajetória, do êxito de suas apresentações anos 90, no Festival de Dança de Lyon/França, e como tema artístico de abertura das Olimpíadas de 2016, no RJ, ou por sua caracterização imagética que pode remeter também a um memorial do universo dos sertões. PHOTO by JOSE LUIZ PEDERNEIRAS Toda esta proposta plena de um sensorial alcance desde os figurinos (Freusa Zechmeister) em malhas escuras que descortinam traços vermelhos no corpo e nos pés, à plasticidade cenográfica (Fernando Velloso) com a simbologia dos painéis de ex-votos às fotografias que registram o cotidiano e as lembranças sertanejas. Movimentando-se nos ritmos do baião e do xaxado ao forró, os bailarinos potencializam danças envolventes de apelo popular, carregadas de um autêntico sabor regionalista sob formas brasileiras, retomando signos emblemáticos das coreografias do Grupo Corpo, no molejo dos requebros de quadril e nos remelejos da sua corporeidade. Em outra retomada luminosa de uma criação coreográfica, pautada no substrato nativo e, mais uma vez, provando como seu original legado artístico a transformou globalmente numa das mais carismáticas companhias de dança do País e do mundo...
Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança) O Grupo Corpo está em temporada no Teatro Multiplan/Shopping Village Mall, de quarta a sábado, às 20h; domingo, às 17h, até 02 de junho.
BODY GROUP: INSTIGATING GESTURAL INVENTIVENESS BETWEEN THE URBANITY OF "BODY" AND THE REGIONALISM OF "PARABELO"
Grupo Corpo Parabelo Photo: Jose Luiz Pederneiras
About to complete its half centennial, Grupo Corpo continues to expand its potential uniqueness as one of the most inventive contemporary dance companies in Brazil. It is always able to continue surprising even in the resumption of old choreographies from its repertoire, as is the case of these titles such as Corpo and Parabelo, respectively creations from the years 2000 and 1997. Knowing how to explore the collusion of scenic resources, from lighting to costumes, in favor of an energized and interactive dancing corporeality that never leaves anything to be desired in its search for a technical perfectionism in the performative uniqueness of its dancers. Based, always, on the peculiar choreographic grammar established by the conceptual ideals of Rodrigo Pederneiras. Within an aesthetic/choreographic dimension, the thematic prevalence of Grupo Corpo is supported by a permanent Brazilianness that appears there, since 1976, with the propelling work of the Company's fame, Maria Maria, inspired by the compositions of Milton Nascimento, this being its visionary debut, initialized by the work of the Argentine choreographer Oscar Araiz. Grupo Corpo Parabelo Photo: Sharen Bradford In the historical journey of the group, there were many incursions into soundtracks by MPB composers, in a specificity that developed through the direct participation of the author musicians in its assembly, parallel to the scenic/choreographic architecture of the shows. In anthological pieces by Cia Mineira, such as, among others, Corpo, by Arnaldo Antunes, or through the partnership Tom Zé and Miguel Wisnik, in Parabelo. The first of them - Body - structured under chords of percussive prevalence, with a techno-electroacoustic compositional base, for a text verbally cut as a concretism poem, signaled in the leitmotifs of words and vocalized phrases (foot / hand / foot / hand – hand / navel / arm) inducing vigorous mechanical/robotic gestures of the dancers. Where the costumes (Freusa Zechmmeister and Fernando Velloso) of black knitwear refer to a scenic and luminary picture (Paulo Pederneiras) of futuristic tones, virtually filled by the flashing of lights from an electronic panel, through a differential movement capable of suggesting "this compound of bones, flesh, blood, organs, muscles, nerves, nails and hair". While Parabelo makes a leap from urban reality to satanism, in what its own choreographer (Rodrigo Pederneiras) considers his work to be the fullest Brazilian, based on an aesthetic/regionalist approach to northeastern hunger. And of their resistance, in the drive of popular and religious beliefs, by the challenge to survive the unusual landscape of the agrestic. The piece has an iconic component in its trajectory, from the success of its performances in the 90s, at the Lyon Dance Festival/France, and as the opening artistic theme of the 2016 Olympics, in Rio de Janeiro, or for its imagery characterization that can also refer to a memorial of the universe of the hinterlands. All this proposal full of a sensorial range from the costumes (Freusa Zechmeister) in dark meshes that reveal red lines on the body and feet, to the scenographic plasticity (Fernando Velloso) with the symbology of the ex-votos panels to the photographs that record the daily life and the memories of the countryside. Moving in the rhythms of baião and xaxado to forró, the dancers enhance engaging dances of popular appeal, loaded with an authentic regionalist flavor under Brazilian forms, resuming emblematic signs of Grupo Corpo's choreographies, in the softness of the hip requires and in the remelejos of its corporeality. In another luminous resumption of a choreographic creation, based on the native substrate and, once again, proving how its original artistic legacy has globally transformed it into one of the most charismatic dance companies in the country and the world...
Wagner Corrêa de Araújo (Dance Critic) Grupo Corpo is in season at Teatro Multiplan/Shopping Village Mall, from Wednesday to Saturday, at 8 pm; Sunday, at 5 p.m., until June 2.
O LAGO DOS CISNES: EM MAIS UMA REMONTAGEM, O BALLET DO THEATRO MUNICIPAL MOSTRA QUALITATIVO EMPENHO ARTÍSTICO
Fotos / Daniel Ebendinger
Entre os três celebrados balés compostos por Tchaikovsky - Quebra Nozes, Bela Adormecida e Lago dos Cisnes - nada se compara ao emblemático efeito de magia provocado por este último, tanto pelas suas carismáticas tessituras orquestrais, como por sua icônica coreografia (Petipa/Ivanov) que vem resistindo há quase um século e meio. Isto sem deixar de falar em sua temática poético-romântica sobre uma metafórica paixão inspirada a um príncipe pela desafiadora ambiguidade de uma personagem, ora mulher ora cisne, numa fabulação de amor e traição entre o bem e o mal, este representado pelas sinistras artimanhas de um feiticeiro. Com um referencial mítico proveniente de ancestrais culturas européias no entorno do simbolismo lendário da pureza dos cisnes brancos, seres alados que eram evocados em suas planações sobre os lagos, como mensageiros da chegada dos calores e das alegrias da estação primaveril. Este êxito permanente na preferência do público de dança também se dá pela prevalência de seus trechos antológicos na trajetória histórica do balé clássico. O que torna maior a exigência técnica, tanto na preparação de seu elenco, como no necessário cuidado artesanal na remontagem de sua coreografia original. Havendo uma nítida percepção deste empenho nesta remontagem de O Lago dos Cisnes pelo Ballet do Theatro Municipal, sob um acertado comando concepcional, 8respectivamente do diretor Hélio Bejani e do maître Jorge Teixeira, trazendo promissores ares na retomada do prestígio como melhor Cia oficial de dança clássica do país. Na continuidade de rigorosa preparação do seu Corpo de Baile a partir da entrada, por intermédio de criteriosa seleção, de outros integrantes, estes já demonstrando unicidade qualitativa com o staff anterior de bailarinos. Com um visível desempenho sob harmônica plasticidade nas cenas de conjunto dos atos brancos ou nos encontros grupais, especialmente nas danças de caráter - italianas e espanholas, na mazurka e nas czardas. Ou pelo alcance da conexão técnica/gestual no tão aplaudido Pas de Quatre. Com aproveitamento de cenografia e figurinos do acervo da FTM, presos à tradição no discricionário cenário em telões e sob uma mais cerimonial indumentária. Tudo ressaltado no contraste luminar (Paulo Ornellas) de claridade das ambientações palacianas dos atos I e III, às tonalidades mais sombrias nas cenas do lago entre árvores. A Orquestra Sinfônica do TM/RJ sendo conduzida com brilho por Tobias Volkmann, tornando-se este um dos regentes mais requisitados para o grande repertório clássico do balé. Salvo alguns fugazes descompassos das trompas na noite de estréia, toda a partitura teve um expressivo alcance desde o sotaque de melancolia em algumas passagens com solos de harpa, cordas e sopros, aos agitatos de allegros dançantes. Onde, ao longo de suas onze récitas, alternam-se três duplas de intérpretes protagonistas como Siegfried e Odette/Odile, todos com distintas qualificações destacando-se, sempre, por convicta e emotiva psicofisicalidade na entrega aos seus papéis. De uma quase etérea leveza da Odette/Odile de Manuela Roçado à precisão sensitiva/irônica nesta dicotômica metamorfose por Juliana Valadão, sem deixar de registrar a envolvência da postura longilínea de Marcella Borges na dúplice personificação. Quanto ao Príncipe Siegfried, vale evidenciar a presença marcante de dois primeiros bailarinos do BTM, de um lado o elegante porte tecno-coreográfico de Filipe Moreira e, de outro, Cícero Gomes numa adequação coreodramática absoluta neste papel, depois de mostrar em montagens anteriores deste balé no palco do Municipal, a força burlesca e cativante de seu Bobo da Corte. Completando este quadro balético, a participação de um brasileiro da recente safra (aqui convidado, como David Motta Soares no Lago de 2022) de jovens talentos em franca ascendência, nas suas carreiras permeadas com participações em cias estrangeiras. Referência de Gustavo Carvalho que no momento atua como um dos primeiros solistas do Ballett am Rhein, de Dusseldorf, dando vazão à sua já vasta experiência no clássico e no contemporâneo. A química de sua atuação impecável como um passional Siegfried ao lado de uma romantizada Odette/Odile por Marcella Borges, completa o encantamento deste elenco irradiante de craques que, afinal, concorrem para fazer deste Lago dos Cisnes, com o Ballet do Theatro Municipal, uma das mais gratificantes surpresas da temporada coreográfica brasileira de 2024. Wagner Corrêa de Araújo
SWAN LAKE: IN YET ANOTHER REVIVAL, THE BALLET OF THE MUNICIPAL THEATER SHOWS QUALITATIVE ARTISTIC COMMITMENT
photographer's credit - Daniel Ebendinger
Among the three celebrated ballets composed by Tchaikovsky - Nutcracker, Sleeping Beauty, and Swan Lake - nothing compares to the emblematic effect of magic provoked by the latter, both for its charismatic orchestral tessitures and for its iconic choreography (Petipa/Ivanov) that has endured for almost a century and a half. Not to mention its poetic-romantic theme about a metaphorical passion inspired by a prince by the challenging ambiguity of a character, sometimes a woman, sometimes a swan, in a fabulation of love and betrayal between good and evil, the latter represented by the sinister tricks of a sorcerer. With a mythical reference from ancestral European cultures around the legendary symbolism of the purity of white swans, winged beings that were evoked in their gliding over the lakes, as messengers of the arrival of the warmth and joys of the spring season. This permanent success in the preference of the dance public is also due to the prevalence of its anthological excerpts in the historical trajectory of classical ballet. This makes the technical demand greater, both in the preparation of its cast, and in the necessary artisanal care in the reassembly of its original choreography. There is a clear perception of this commitment in this re-staging of Swan Lake by the Ballet of the Municipal Theater, under a correct conceptual command, 8respectively of the director Hélio Bejani and the maître Jorge Teixeira, bringing promising airs in the resumption of prestige as the best official classical dance company in the country. In the continuity of rigorous preparation of its Corps de Ballet from the entry, through careful selection, of other members, these already demonstrating qualitative uniqueness with the previous staff of dancers. With a visible performance under harmonic plasticity in the ensemble scenes of the white acts or in the group meetings, especially in the character dances - Italian and Spanish, in the mazurka and in the czardas. Or for the reach of the technical/gestural connection in the much-applauded Pas de Quatre. With the use of scenography and costumes from the MTF collection, stuck to tradition in the discretionary scenario on screens and under a more ceremonial costume. All highlighted in the luminary contrast (Paulo Ornellas) of the clarity of the palatial settings of acts I and III, to the darker tones in the scenes of the lake between trees. The TM/RJ Symphony Orchestra is brilliantly conducted by Tobias Volkmann, making him one of the most sought-after conductors for the great classical repertoire of ballet. Except for a few fleeting mismatches of the horns on opening night, the entire score had an expressive range from the melancholy accent in some passages with harp solos, strings, and woodwinds, to the agitatos of dancing allegro. Where, throughout its eleven performances, three pairs of protagonist interpreters alternate, such as Siegfried and Odette/Odile, all with different qualifications, always standing out for their convinced and emotional psychophysicality in the delivery of their roles. From an almost ethereal lightness of Manuela Roçado's Odette/Odile to sensitive/ironic precision in this dichotomous metamorphosis by Juliana Valadão, without failing to register the involvement of Marcella Borges' long posture in the double personification. As for Prince Siegfried, it is worth highlighting the remarkable presence of two BTM first dancers, on the one hand the elegant techno-choreographic bearing of Filipe Moreira and, on the other, Cícero Gomes in an absolute choreodramatic adaptation in this role, after showing in previous productions of this ballet on the stage of the Municipal, the burlesque and captivating force of his Jester. Completing this balletic picture, the participation of a Brazilian from the recent crop (invited here, as David Motta Soares in Lago 2022) of young talents in frank ascendancy, in their careers permeated with participations in foreign companies. Gustavo Carvalho, who is currently one of the first soloists of the Ballett am Rhein, in Düsseldorf, giving vent to his already vast experience in classical and contemporary. The chemistry of his impeccable performance as a passionate Siegfried alongside a romanticized Odette/Odile by Marcella Borges, completes the enchantment of this radiant cast of stars who, after all, compete to make this Swan Lake, with the Municipal Theater Ballet, one of the most gratifying surprises of the 2024 Brazilian choreographic season. Wagner Corrêa de Araújo
Video by Daniel A. Rodrigues
CIA DE DANÇA DEBORAH COLKER / SAGRAÇÃO : NUMA VISCERAL RELEITURA À LUZ DOS POVOS BRASILEIROS ORIGINÁRIOS
Fotos/ Flávio Colker
A mais recente obra da Companhia de Dança Deborah Colker completa a trilogia de conceitual antropológico/ritualístico inicializada por Cão Sem Plumas. Da terra que se auto-define pela aridez da lama no insólito trajeto do homem/caranguejo, inspirando-se na imagética poética cabralina para figurar o mangue nordestino. Seguida pela praga da moléstia que assedia, entre trevas, a condição humana e onde o sonho para vencer a peste depende da sua libertação pela Cura. Que, bem a propósito, titula uma coreografia atravessada pelas crenças de redenção nas entidades do Candomblé, com inserções bíblicas pela dramaturgia do rabino Nilton Bonder. E, agora, em 2024, na lembrança do ideário estético revolucionário da Sagração de Stravinsky com seu descortino em 1913 de uma nova era musical/coreográfica, no presságio de Nijinsky (“Ela abrirá horizontes novos, iluminados pelos raios do sol. Tudo será, então, diverso, novo e belo"). Esta outra Sagração, desta vez foi concebida, coreografada e dirigida por Deborah Colker, com plena brasilidade, ao remeter em sua releitura, a uma diferencial transmutação metafórica do primitivo cenário de aldeães russos em saga indigenista no entorno dos povos originários da terra brasileira. Distanciando-se assim de uma quase absoluta fidelidade narrativa e sinfônica das versões referenciais de Maurice Béjart, Kenneth MacMillan, John Neumeier, Angelin Preljocaj, Pina Bausch. Preferindo seguir, ainda que em parte, a trajetória aberta pela transgressiva concepção do britânico Akram Khan, de ascendência bangladeshiana, com o uso de outras inserções musicais. No caso da criação coreográfica de Deborah Colker, intermediando ou superpondo partes da partitura stravinskyana ao lado de autóctones acordes rítmicos indigenistas, com prevalência de sonoridades percussivas, tendo como base os arranjos autorais da trilha de Alexandre Elias. Partindo da cosmogonia evolucionista dos quatro elementos (água, fogo, ar e terra) integralizada num intencionalismo épico da representação coreográfica, cênica e musical de como teria sido o princípio do homem e do universo no olhar indígena. Onde a decifração do mistério de sua primitiva sacralidade é miscigenada com o Gênesis bíblico, por intermédio do roteiro concepcional da diretora e coreógrafa Deborah Colker, em sua dúplice parceria dramatúrgica com o escritor judaico/brasilianista Nilton Bonder. Trazendo à cena figuras dos relatos do Antigo Testamento como uma Eva distante do Eden, aqui personalizada numa ascendência negra/africana, ao lado de um Abraão descompromissado de sua fabular missão, além de intervenções vocais em off de Takumã Kuikuro explicando crendices místicas em seu linguajar indígena. Num surpreendente desfile de caracteres do mundo animal e herbívoro, indo das bactérias aos quadrúpedes e serpentes, numa tipicidade indumentária (Cláudia Kopke) tudo sob provocante ambiência imaginária a partir da artesanal direção de arte de Gringo Cardia. Completada na original envolvência do uso cenográfico de bambus/estacas como móbiles, capazes de um mágico sugestionamento, metamorfoseados em tabas, barcos, redes e lanças. E que se estende a uma plasticidade espacial na caixa cênica conectando terra e céu, ampliada nos efeitos luminares de Beto Bruel. Para expressar, via energizada e imersiva proposição performática e gestual para um afinado elenco de 15 bailarinos, o legado das tradições lendárias dos povos originários, fazendo de Sagração um tributo à passagem do trigésimo aniversário da Companhia de Dança Deborah Colker. Entre um senso de metafórica selvageria da corporeidade pulsante dos bailarinos e a mistificação cerimonial/ritualística da cena dançante sob o compasso da ancestralidade indigenista, sinalizados com o olhar atento de Deborah Colker. Sempre ancorado nos avanços do atual universo coreográfico, em inédita e brava busca inventiva de uma das mais celebradas companhias brasileiras da dança contemporânea. Wagner Corrêa de Araújo Sagração/Companhia de Dança Deborah Colker está em cartaz no Theatro Municipal/RJ, de quinta a segunda, em sessões vesperais e noturnas, até 25 de março.
photographer's credit - Flávio Colker
CIA DE DANÇA DEBORAH COLKER / SAGRAÇÃO: IN A VISCERAL REREADING IN THE LIGHT OF THE NATIVE BRAZILIAN PEOPLES
The most recent work of the Deborah Colker Dance Companycompletes the trilogy of anthropological/ritualistic concepts initiated by Cão Sem Plumas. From the land that defines itself by the aridity of the mud in the unusual path of the man/crab, inspired by the poetic imagery of Cabralto to depict the northeastern mangrove. Followed by the plague of disease that harasses, in darkness, the human condition and where the dream of defeating the plague depends on its liberation by the Cure. Which, by the way, titles a choreography crossed by the beliefs of redemption in the entities of Candomblé, with biblical insertions by the dramaturgy of Rabbi Nilton Bonder. And now, in 2024, in the memory of the revolutionary aesthetic ideals of Stravinsky's Consecration with its unveiling in 1913 of a new musical/choreographic era, in Nijinsky's omen ("It will open new horizons, illuminated by the rays of the sun. Everything will then be different, new, and beautiful"). This other Rite, this time was conceived, choreographed, and directed by Deborah Colker, with full Brazilianness, referring in its rereading to a differential metaphorical transmutation of the primitive scenario of Russian villagers in an indigenist saga in the surroundings of the original peoples of the Brazilian land. Thus, distancing himself from an almost absolute narrative and symphonic fidelity of the referential versions of Maurice Béjart, Kenneth MacMillan, John Neumeier, Angelin Preljocaj, Pina Bausch. Preferring to follow, albeit in part, the trajectory opened by the transgressive conception of the British Akram Khan, of Bangladeshi descent, with the use of other musical insertions. In the case of Deborah Colker's choreographic creation, intermediating or superimposing parts of the Stravinsky and score alongside autochthonous indigenist rhythmic chords, with a prevalence of percussive sonorities, based on the authorial arrangements of Alexandre Elias' score. Starting from the evolutionist cosmogony of the four elements (water, fire, air, and earth) integrated into an epic intentionalism of the choreographic, scenic, and musical representation of what the beginning of man and the universe would have been like in the indigenous gaze. Where the decipherment of the mystery of its primitive sacredness is mixed with the biblical Genesis, through the conceptual script of the director and choreographer Deborah Colker, in her double dramaturgical partnership with the Jewish/Brazilianist writer Nilton Bonder. Bringing to the scene figures from the Old Testament accounts such as an Eve distant from Eden, here personalized in a Black/African ancestry, next to an Abraham uncommitted to his fabulous mission, in addition to vocal interventions in off by Takumã Kuikuro explaining mystical beliefs in his Indigenous language. In a surprising parade of characters from the animal and herbivorous world, ranging from bacteria to quadrupeds and snakes, in a typicity of clothing (Cláudia Kopke) all under a provocative imaginary ambience from the artisanal art direction of Gringo Cardia. Completed in the original surroundings of the scenographic use of bamboo/stakes as mobiles, capable of a magical suggestion, metamorphosed into tabas, boats, nets, and spears. And that extends to a spatial plasticity in the scenic box connecting earth and sky, amplified in Beto Bruel's luminary effects. To express, through an energized and immersive performative and gestural proposition for a finely tuned cast of 15 dancers, the legacy of the legendary traditions of the native peoples, making Sagração a tribute to the passage of the thirtieth anniversary of the Deborah Colker Dance Company. Between a sense of metaphorical savagery of the dancers' pulsating corporeality and the ceremonial/ritualistic mystification of the dance scene under the rhythm of indigenist ancestry, signaled with the watchful eye of Deborah Colker. Always anchored in the advances of the current choreographic universe, in an unprecedented and brave inventive search of one of the most celebrated Brazilian contemporary dance companies. Wagner Corrêa de Araújo Sagração/Companhia de Dança Deborah Colker is on display at Theatro Municipal/RJ, from Thursday to Monday, in evening and evening sessions, until March 25.
O CORSÁRIO: EM ARTESANAL PERFORMANCE SOB EXOTISMO CÊNICO ORIENTALISTA, O BALÉ DO MUNICIPAL FECHA A TEMPORADA 2023
Photos: Daniel Ebendinger
O Corsário/Balé do Theatro Municipal. Dezembro/2023. Fotos/Daniel Ebendinger.
O empenho técnico e artístico para fechar qualitativamente a Temporada 2023, com uma luminosa versão de O Corsário, mostra como o Balé do Theatro Municipal está no caminho certo para recuperar seu prestigioso lugar como a mais tradicional companhia clássica do País. Depois de tantos descaminhos e crises nos últimos anos, já lá vão aparecendo os primeiros e sintomáticos bons frutos, como a surpreendente revelação destes novos talentos, resultado de uma criteriosa seleção temporária para preencher os defasados quadros do seu Corpo de Baile. E da auspiciosa notícia de que aconteça finalmente, em 2024, o tão ansiado concurso em moldes oficiais, não só para assegurar a permanência dos que serão escolhidos entre os melhores, como de incentivar, ainda, outras descobertas, desta vez em caráter definitivo. Devendo se estender o aplauso entusiástico do público ao ideário de seus realizadores - o diretor do BTM Hélio Bejani, também responsável, ao lado de Jorge Texeira, pela bela remontagem e adaptação a partir do original de Marius Petipa, inspirado apenas subliminarmente na temática da narrativa ficcional de Lord Byron, datada de 1814. Além da convicta atuação da OSTM sob o comando do maestro Jesus Figueiredo que soube como dar conta de uma partitura fragmentária, com prevalência de energizados acordes ligeiros de vários compositores (Adolphe Adam, Cesare Pugni, Leo Delibes e Riccardo Drigo). Onde a plasticidade da arquitetura cenográfica (Manoel dos Santos) ficou rigorosamente presa à tradição acadêmica, em suas referências pictóricas de uma ambiência orientalista. E na superposição do recurso de telões que mostram desde o típico interior de um palácio otomano às cenas externas ora num mercado, ora entre rochas à beira mar no acampamento pirata. Incluído aí um elegante figurino (Tania Agra), rico no detalhamento identitário da tipicidade exótica do Extremo Oriente, portentoso no brilho de bordados e entalhes nos corpetes e tutus, reluzente nas vestes das escravas do harém de um paxá, às túnicas e turbantes equalizados nas cenas grupais masculinas. Tudo isto ressaltado pela predominância da funcionalidade de vazados efeitos luminares (Paulo Ornellas). Embora se apoie numa trama rocambolesca de exploração sexual, no entremeio de disputas violentas pela venda e pela posse das escravas entre mercadores, paxás e piratas, flores envenenadas e delírios pelo ópio, uma ancestral temática já não muito apropriada ao empoderamento feminista de hoje. Paralela a uma romantizada paixão provocada por Medora, uma das escravas traficadas, pelo pirata e corsário Conrad. Tudo intermediado por agitadas danças de caráter principalmente masculinas, ao lado de gestos teatrais miméticos ou solos e pas-de-deux mais líricos, na unicidade da entrega mostrada pelos solistas junto ao perceptível empenho do Corpo de Baile. Dando chance aos diferentes elencos de protagonistas, a começar do casal enamorado Conrad e Medora, aos serviçais como Ali ou a odaliscas submissas como Gulnara. Do bonito alongamento, arabescos e pulsantes elevações de Filipe Moreira na première de O Corsário à impactante performance do escravo Ali (José Ailton), com seus vigorosos giros duplos que potencializam a sua altivez corporal e uma bravura técnica extasiante no celebrado Pas-de-Deux a Trois. Sem deixar de destacar a envolvente tessitura estética gestual das bailarinas Marcella Borges (Medora) e Manuela Roçado (Gulnara) imprimida com ênfase estelar absoluta, havendo de se notar, com certeza, que ambas terão pela frente uma potencial trajetória. Vi também Manuela Roçado como Medora, em outra récita, mas aí torna-se difícil usar palavras isoladas para definir sua insuperável força carismática neste papel, sem conecta-la à integralidade desta outra representação, dimensionando-a devidamente como parte de um todo. Para quem assistiu à noite de estreia foi um momento muito especial reunindo o apuro concepcional cenográfico ao apelo virtuosístico de seus intérpretes, em espetáculo imperdível cujas récitas se estenderão até a antevéspera das festas natalinas e, quem sabe, podendo mesmo ser sugestionado como um diferencial regalo afetivo àqueles que amam a dança clássica... Wagner Corrêa de Araújo O Corsário/Balé do TMRJ, está em cartaz no Theatro Municipal, até o dia 23/12, at 7 p.m.; COM Sessões Especiais on 17/12, at 5 p.m., E 19/12, at 2 p.m.
THE CORSAIR : IN AN ARTISANAL PERFORMANCE UNDER ORIENTALIST SCENIC EXOTICISM, THE MUNICIPAL BALLET CLOSES THE 2023 SEASON
The Corsair/Ballet of the Municipal Theater. December/2023. Photos/Daniel Ebendinger
The technical and artistic effort to qualitatively close the 2023 Season, with a luminous version of The Corsair, shows how the Municipal Theater Ballet is on the right track to regain its prestigious place as the most traditional classical company in the country. After so many missteps and crises in recent years, the first and symptomatic good fruits are already appearing, such as the surprising revelation of these new talents, the result of a careful temporary selection to fill the outdated cadres of its Corps de Ballet. And the auspicious news that the long-awaited official contest will finally take place in 2024, not only to ensure the permanence of those who will be chosen among the best, but also to encourage other discoveries, this time definitively. The enthusiastic applause of the public should be extended to the ideas of its directors - the director of BTM Hélio Bejani, also responsible, alongside Jorge Texeira, for the beautiful re-staging and adaptation from the original by Marius Petipa, inspired only subliminally by the theme of Lord Byron's fictional narrative, dated 1814. In addition to the convinced performance of OSTM under the command of maestro Jésus Figueiredo, who knew how to handle a fragmentary score, with a prevalence of energized light chords by several composers (Adolphe Adam, Cesare Pugni, Leo Delibes and Riccardo Drigo). Where the plasticity of scenographic architecture (Manoel dos Santos) was rigorously tied to the academic tradition, in its pictorial references of an orientalist ambience. And in the superimposition of the resource of screens that show from the typical interior of an Ottoman palace to the exterior scenes, sometimes in a market, sometimes between rocks by the sea in the pirate camp. Included in this is an elegant costume (Tania Agra), rich in the identity detail of the exotic typicity of the Far East, portentous in the brilliance of embroidery and carvings on the bodices and tutus, gleaming in the robes of the slaves of a pasha's harem, to the tunics and turbans equalized in the male group scenes. All of this is highlighted by the predominance of the functionality of luminary effects (Paulo Ornellas). Although it is based on a ridiculous plot of sexual exploitation, in the midst of violent disputes over the sale and possession of slaves between merchants, pashas and pirates, poisoned flowers and opium delusions, an ancestral theme no longer very appropriate to today's feminist empowerment. Parallel to a romanticized passion provoked by Medora, one of the trafficked slaves, by the pirate and privateer Conrad. All intermediated by agitated dances of a mainly male character, alongside mimetic theatrical gestures or more lyrical solos and pas-de-deux, in the uniqueness of the delivery shown by the soloists together with the perceptible commitment of the Corps de Ballet. Giving a chance to the different casts of protagonists, starting with the enamored couple Conrad and Medora, the servants like Ali or submissive odalisques like Gulnara. From the beautiful elongation, arabesques and pulsating elevations of Filipe Moreira at the premiere of The Corsair to the impactful performance of the slave Ali (José Ailton), with his vigorous double turns that enhance his bodily haughtiness and an ecstatic technical bravery in the celebrated Pas-de-Deux a Trois. Not forgetting to highlight the engaging gestural aesthetic weaving of the dancers Marcella Borges (Medora) and Manuela Roçado (Gulnara) imprinted with absolute stellar emphasis, and it should be noted, for sure, that both will have a potential trajectory ahead of them. I also saw Manuela Roçado as Medora, in another performance, but here it becomes difficult to use isolated words to define her unsurpassed charismatic strength in this role, without connecting it to the integrality of this other representation, properly dimensioning it as part of a whole. For those who attended the opening night, it was a very special moment, bringing together the scenographic conceptual refinement with the virtuosic appeal of its interpreters, in an unmissable show whose performances will extend until the eve of the Christmas festivities and, who knows, it may even be suggested as an affective gift differential to those who love classical dance... Wagner Corrêa de Araújo The Corsair/Ballet of TMRJ, is on display at the Municipal Theater, until 12/23, at 7 pm; with special sessions on 12/17, at 5 pm, and 12/19, at 2 pm.
TRILOGIA / RICARDO AMARANTE : O BRILHO DE UM COREÓGRAFO BRASILEIRO NA COMPAÑIA COLOMBIANA DE BALLET
Photos: Juan Arias
O Ballet del Teatro Colón, criado em 1925, foi a primeira cia clássica oficial da América Latina, seguido do Balé do Theatro Municipal/RJ em 1936, numa bela iniciativa de Maria Olenewa. Uma tradição coreográfica que se estendeu também ao Ballet de Santiago e que, durante dezesseis anos, foi dirigido pela brasileira Marcia Haydée. Estas três companhias estatais são as únicas que mantiveram viva em seus repertórios, no hemisfério sul americano, a prevalência do balé clássico. Onde o protagonismo estético que as igualava num mesmo patamar hoje é, sem dúvida alguma, do Ballet Estable del Teatro Colón, com sua temporada plena de grandes produções clássicas, dando também espaço ao contemporâneo. E, agora, chega aos palcos brasileiros pela primeira vez e numa rápida turnê, a Compañia Colombiana de Ballet, criada no início deste milênio, sendo a única daquele país que estabelece sua linhagem artística a partir da base clássica. Sendo dirigida, no momento, pela reconhecida competência do coreógrafo Jose Manuel Ghiso, ex solista do Balé de Santiago quando comandado por Márcia Haydée. Num programa todo composto por obras de mais um destes brasileiros que já há algum tempo vem se destacando, além fronteiras, com suas criações coreográficas. Estamos falando da trajetória do paulista Ricardo Amarante, do início como bailarino em sua passagem por cias européias, desde o time de primeiros solistas do Royal Ballet of Flanders, onde estreou sua primeira coreografia autoral (A Fuego Lento), à apresentação de seus balés em teatros pelo mundo afora. Em data recente tivemos inclusive a chance de ver duas obras de Ricardo Amarante numa première com o Balé do Teatro Municipal/RJ, na sua versão do Bolero de Ravel e também com Love Fear Loss. A última delas, agora, fazendo parte deste repertorio da Compañia Colombiana de Ballet Estruturada no formato de três pas-de-deux, Love Fear Loss tem como substrato inspirador a temática lírica e trágica de quatro canções que celebrizaram Edith Piaf. Em releituras pianísticas, de La Vie em Rose, em representação apenas sonora, ao despertar da paixão amorosa (Hymne a l’Amour) sequenciado pelos conflitos da separação (Ne Me Quitte Pas) à dor causada por uma terminalidade fatalista (Mon Dieu). No entremeio dos acordes em compasso de prevalentes adágios, sucedendo-se os três bailarinos em arabescos, giros, entrelaces e elevações numa luminosa performance com absoluta entrega amorosa dos tres casais. Sucedendo-se, em Longing, a segunda peça da noite, uma sensorial linguagem gestual capaz de expressar as diferentes fases do surgimento das paixões. Do despertar do encantamento em corpos que se encontram à beira da eclosão dos desejos sensuais quando se tocam, o que vai se revelando na intensidade de uma hibrida corporeidade entre o lirismo e a sexualidade de uma corporeidade se desnudando. Em expressiva criação de Ricardo Amarante para onze bailarinos, desta vez sob os dúplices acordes musicais de Pablo Ziegler e Astor Piazolla. Para tudo se direcionar, em Fuego Lento, a uma apaixonante dramaturgia da fisicalidade na espontânea incorporação da corporeidade dançante do tango de raiz (Carlos Gardel) ao livre compasso das composições de Lalo Schifrin, Piazzola e Sayo Kosugi, numa luminosa coreografia de estética neoclássica. Convergindo para uma performance reveladora no seu compartilhamento emotivo palco/plateia enquanto traz, através das surpreendentes criações de Ricardo Amarante para um afinado elenco de bailarinos, a qualitativa marca estética da Compañia Colombiana de Ballet no universo coreográfico da América Latina. Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança)
TRILOGY / RICARDO AMARANTE: THE BRILLIANCE OF A BRAZILIAN CHOREOGRAPHER AT COMPAÑIA COLOMBIANA DE BALLET
The Ballet del Teatro Colón, created in 1925, was the first official classical company in Latin America, followed by the Ballet of the Municipal Theater in Rio de Janeiro in 1936, in a beautiful initiative by Maria Olenewa. A choreographic tradition that also extended to the Ballet de Santiago and which, for sixteen years, was directed by the Brazilian Marcia Haydée. These three state-owned companies are the only ones that have kept alive in their repertoires, in the South American hemisphere, the prevalence of classical ballet. Where the aesthetic protagonism that equaled them on the same level today is, without a doubt, the Ballet Estable del Teatro Colón, with its season full of great classical productions, also giving space to the contemporary. And now, the Compañia Colombiana de Ballet, created at the beginning of this millennium, is the only one in that country that establishes its artistic lineage from the classical base. It is currently directed by the recognized competence of choreographer Jose Manuel Ghiso, former soloist of the Santiago Ballet when led by Márcia Haydée. In a program entirely composed of works by another of these Brazilians who for some time has been standing out, across borders, with his choreographic creations. We are talking about the trajectory of Ricardo Amarante, from his beginnings as a dancer in his passage through European companies, from the team of first soloists of the Royal Ballet of Flanders, where he debuted his first authorial choreography (A Fuego Lento), to the presentation of his ballets in theaters around the world. Recently we even had the chance to see two works by Ricardo Amarante at a premiere with the Ballet of the Municipal Theater/RJ, in his version of Ravel's Bolero and also with Love Fear Loss. The last of them, now, is part of this repertoire of the Compañia Colombiana de Ballet. Structured in the format of three pas-de-deux, Love Fear Loss has as its inspiring substrate the lyrical and tragic theme of four songs that made Edith Piaf famous. In pianistic reinterpretations, from La Vie to Rose, in a sound representation only, to the awakening of amorous passion (Hymne a l'Amour) sequenced by the conflicts of separation (Ne Me Quitte Pas) to the pain caused by a fatalistic terminality (Mon Dieu). In the middle of the chords in rhythm of prevalent adages, the three dancers succeed each other in arabesques, turns, interlaces and elevations in a luminous performance with absolute loving surrender of the three couples. Succeeding, in Longing, the second play of the evening, a sensorial sign language capable of expressing the different phases of the emergence of passions. Of the awakening of enchantment in bodies that are on the verge of the outbreak of sensual desires when they touch each other, which is revealed in the intensity of a hybrid corporeity between lyricism and the sexuality of a corporeality stripping itself bare. In an expressive creation by Ricardo Amarante for eleven dancers, this time under the double musical chords of Pablo Ziegler and Astor Piazolla. In Fuego Lento, everything is directed to a passionate dramaturgy of physicality in the spontaneous incorporation of the dancing corporeality of the root tango (Carlos Gardel) to the free rhythm of the compositions of Lalo Schifrin, Piazzola and Sayo Kosugi, in a luminous choreography of neoclassical aesthetics. Converging on a revealing performance in its emotional sharing of stage/audience while bringing, through the surprising creations of Ricardo Amarante to a finely tuned cast of dancers, the qualitative aesthetic mark of the Compañia Colombiana de Ballet in the choreographic universe of Latin America. Wagner Corrêa de Araújo (Dance Critic)
TRIPLE BILL / BALÉ DO TMRJ : NUMA INCURSÃO COREOGRÁFICA DIRECIONADA À ESTÉTICA NEOCLÁSSICA
Triple Bill / Balé do Theatro Municipal/RJ. Outubro/2023. Fotos/Daniel Ebendinger.
Dando seguimento à temporada 2023, o Balé do Teatro Municipal apresenta um programa comparativo, em caráter quase didático, inicializado pela tradição academicista do clássico, através de uma funcional releitura, por Jorge Teixeira, da Noite de Walpurgis , a partir da coreografia original de Leonid Lavrovsky, concebida para o Bolshoi em 1941. Seguida de duas criações de Ricardo Amarante , estas sob uma estética neoclássica com um olhar mais voltado à contemporaneidade, por intermédio das obras Love Fear Loss e do Bolero de Ravel. Num espetáculo titulado de Triple Bill, classificação muito usada nos palcos internacionais para mostrar uma tríplice sequência de obras diferentes. A cena de balé Noite de Walpurgis que integra com certa habitualidade a ópera Fausto de Charles Gounod, com seu substrato narrativo em torno do pecado e da salvação, entre o céu e o inferno, através de um pacto diabólico de seu personagem titular, expõe o contraponto entre o virtuosismo coreográfico e o embate da pureza espiritual diante da tentação corporal. Aqui, numa concepção cenográfica (Carlos Dalarmelino) e indumentária (Tania Agra) conservadora, preservando a figuração primitiva da trama sem quaisquer avanços cênicos/coreográficos, em performance básica na atuação eficaz de solistas e corpo de baile, com um singularizado destaque para o Fausto de Filipe Moreira, a Marguerite de Juliana Valadão e o Pan de Cícero Gomes. Mas é exatamente na passagem para as duas obras seguintes que se pode perceber um maior peso inventivo com novos ares na envolvência palco/plateia, provocados pelas criações do coreógrafo paulista Ricardo Amarante. Resultado de sua bela trajetória, como bailarino e diretor, em várias companhias internacionais, entre estas a Paris Opera Ballet, Jeune Ballet de France e Royal Ballet de Flandres. Em Love Fear Loss, seu balé mais representado e aplaudido pela crítica, a inspiração parte de três pas-de-deux, tendo como substrato a temática lírica e trágica de quatro das canções que celebrizaram Edith Piaf . De um prólogo, apenas sonoro, com La Vie en Rose, ao surgimento da paixão amorosa (Hymne à l”Amour), indo dos conflitos da separação (Ne Me Quitte Pas) à dor causada por uma terminalidade fatal (Mon Dieu). Balero - Video - part 1 Em transcrições pianísticas por Natahliya Chepurenko , nas apuradas interpretações ao vivo por Calebe Faria , numa caixa cênica preenchida somente pelo piano e pelos três casais de bailarinos. Vestidos por figurinos de tecidos leves e aquarelados, idealizados pelo próprio coreógrafo Amarante, responsabilizando-se este também pelos efeitos de luzes ambientalistas e que favorecem o clima intimista e melodioso das antológicas canções do repertório de Piaf. No entremeio dos acordes em compasso de prevalentes adágios, sucedendo-se os seis bailarinos em arabescos, giros, entrelaces e elevações, numa luminosa performance de absoluta entrega amorosa dos três casais, nas sequenciais partes - Love (com Fernanda Martiny /Filipe Moreira), Fear (por Claudia Mota/Edifranc Alves) e Loss (através de Juliana Valadão/Cícero Gomes) . O programa se completando com uma das recentes versões de um dos balés mais populares de todos os tempos - Bolero, de Maurice Ravel, desde o imbatível dimensionamento conceitual e estético que Maurice Bejart imprimiu à composição. Em outra exuberante coreografia de Ricardo Amarante, com sua potencial conexão de energia e sensualidade, ampliada pelo acerto da conduta sinfônica de Felipe Prazeres, sujeita na estreia a um pequeno e instantâneo deslize na sonoridade dos sopros. E que reune, num similar equilíbrio do Balé do TMRJ, bailarinos em processo de ascensão ao lado daqueles de reconhecida maturidade, num louvável empenho conjunto de Hélio Bejani e Jorge Teixeira para resgatar o antigo prestígio da Cia. Além de contar, ainda, com a versatilidade de outro brasileiro de carreira internacional Renê Salazar David, desta vez na concepção cenográfica e indumentária. Neste revelador espetáculo do talento múltiplo de Ricardo Amarante, mais um destes artistas brasileiros do universo da dança que brilham lá fora, a direção artística do Municipal (Eric Herrero) carioca dá um dúplice e vitorioso gol. Não só pela valorização de nossos criadores coreográficos, como pelo necessário estímulo à atualização em moldes contemporâneos, sem abandonar a tipicidade do repertório de uma respeitável cia clássica de Balé, assim como fazem todas as grandes cias estáveis de dança pelo mundo afora... Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança) Balé do TMRJ/Triple Bill está em cartaz no TM, desde o dia 11 até domingo, 15 de outubro, às 17h.
TRIPLE BILL / TMRJ BALLET: IN A CHOREOGRAPHIC INCURSION DIRECTED TO NEOCLASSICAL AESTHETICS
Triple Bill / Ballet of the Municipal Theater/RJ. October/2023. Photos/Daniel Ebendinger.
Continuing the 2023 season, the Municipal Theatre Ballet presents a comparative program, in an almost didactic character, initiated by the academic tradition of the classic, through a functional rereading, by Jorge Teixeira, of Walpurgis Night, based on the original choreography by Leonid Lavrovsky, conceived for the Bolshoi in 1941. Followed by two creations by Ricardo Amarante, these under a neoclassical aesthetic with a more contemporary look, through the works Love Fear Loss and Ravel's Bolero. In a show entitled Triple Bill, a classification widely used on international stages to show a triple sequence of different works. The ballet scene Walpurgis Night, which is part of Charles Gounod's opera Faust, with its narrative substratum around sin and salvation, between heaven and hell, through a diabolical pact of its titular character, exposes the counterpoint between choreographic virtuosity and the clash of spiritual purity in the face of bodily temptation. Here, in a scenographic conception (Carlos Dalarmelino) and conservative clothing (Tania Agra), preserving the primitive figuration of the plot without any scenic/choreographic advances, in basic performance in the effective performance of soloists and corps de ballet, with a singular emphasis on Faust by Filipe Moreira, Marguerite by Juliana Valadão and Pan by Cícero Gomes. But it is precisely in the passage to the next two works that one can perceive a greater inventive weight with new airs in the stage/audience surroundings, provoked by the creations of the São Paulo choreographer Ricardo Amarante. It is the result of his beautiful career, as a dancer and director, in several international companies, including the Paris Opera Ballet, Jeune Ballet de France and Royal Ballet de Flanders. In Love Fear Loss, her most performed and critically applauded ballet, the inspiration comes from three pas-de-deux, having as substrate the lyrical and tragic themes of four of the songs that made Edith Piaf famous. From a prologue, only sonorous, with La Vie en Rose, to the emergence of amorous passion (Hymne à l"Amour), going from the conflicts of separation (Ne Me Quitte Pas) to the pain caused by a fatal terminality (Mon Dieu). In piano transcriptions byNatahliya Chepurenko , in refined live interpretations by Calebe Faria, in a scenic box filled only by the piano and the three couples of dancers. Dressed in costumes of light and watercolor fabrics, idealized by the choreographer Amarante himself, who is also responsible for the effects of environmentalist lights and that favor the intimate and melodious atmosphere of the anthological songs of Piaf's repertoire. Bolero - Video - Part 2 In the middle of the chords in rhythm of prevalent adages, the six dancers succeed each other in arabesques, turns, interlaces and elevations, in a luminous performance of absolute loving surrender of the three couples, in the sequential parts - Love (with Fernanda Martiny / Filipe Moreira), Fear (by Claudia Mota / Edifranc Alves) and Loss (by Juliana Valadão / Cícero Gomes). The program is completed with one of the recent versions of one of the most popular ballets of all time - Bolero, by Maurice Ravel, from the unbeatable conceptual and aesthetic dimensioning that Maurice Bejart imprinted on the composition. In another exuberant choreography by Ricardo Amarante, with its potential connection of energy and sensuality, amplified by the accuracy of Felipe Prazeres' symphonic conduct, subject in the premiere to a small and instantaneous slip in the sonority of the woodwinds. And that brings together, in a similar balance of the TMRJ Ballet, dancers in the process of ascension alongside those of recognized maturity, in a commendable joint effort of Hélio Bejani and Jorge Teixeira to rescue the old prestige of the Company. In this revealing spectacle of the multiple talent of Ricardo Amarante, another one of these Brazilian artists from the dance universe who shine abroad, the artistic direction of the Municipal (Eric Herrero) from Rio de Janeiro gives a double and victorious goal. Not only for the appreciation of our choreographic creators, but also for the necessary stimulus to update in contemporary molds, without abandoning the typicity of the repertoire of a respectable classical ballet company, as do all the great stable dance companies around the world... Wagner Corrêa de Araújo (Dance Critic) TMRJ/Triple Bill Ballet is on display at TM, from October 11 to Sunday, October 15, at 5 pm.
THIAGO SOARES / ÚLTIMO ATO : SEM QUE AS LUZES SE APAGUEM, LONGE DA DESPEDIDA
Último Ato. Thiago Soares/Direção e Coreografia. Outubro/2023. Fotos/Divulgação.
Quem diria que um menino de família simples com limitadas condições financeiras, de uma destas ruas comuns do subúrbio carioca, dos espontâneos improvisos do “break", como num passe de mágica, se tornaria estrela de primeira grandeza do mais celebrado palco londrino da dança clássica. Tendo ainda transitado profissionalmente por outros espaços sacralizados por nomes míticos da dança ou em conceituadas companhias de balé, desde o Theatro Municipal carioca à sua seleção para o Bolshoi ou passando pelo elenco do Kirov. Antes que chegasse a sua grande chance de se tornar, em pouco tempo, um dos primeiros e absolutos bailarinos do Royal Ballet. 'Diamonds' pas de deux (Balanchine: Marianela Nunez & Thiago Soares; The Royal Ballet) video Onde durante quase duas décadas tornar-se-ia um destes vitoriosos bailarinos/atores, com seus personagens dramatúrgicos de protagonismo masculino, em balés como Oneguin, Manon ou Mayerling. Cumprindo, assim, o desafio de enfrentamento do preconceito machista de seus colegas de escola pública com sua reflexão visionária de que estava apenas aprendendo teatro num estúdio de balé. “Sempre tive interesse em conhecer os personagens por seu lado teatral, pelo que trazem de narrativo, por suas características expressivas. E o fato de ter chegado ao Royal me ajudou muito nisto, pois é uma companhia única no mundo que consegue reunir sempre o teatro e a dança’’, foi o que nos disse Thiago Soares em entrevista para a Revista Dança Brasil, em 2015, distante ainda da sua decisão futura aos 38 anos, trocando as glórias londrinas pela busca investigativa de novos caminhos na arte da dança. O que ele vem fazendo com o maior empenho, retomando ocasionalmente suas raízes de dançarino de break conectando-as à sua sólida base acadêmica de tantos anos. Ora coreografando e dirigindo um espetáculo inteiro naquela que foi sua primeira companhia clássica o Balé do Municipal. Ou apresentando-se em obras, com um olhar mais contemporâneo como num pas-de-deux (Paixão) criado por Deborah Colker e dançado pelos dois. Tendo aberto, em tempos recentes, um estúdio de dança no Rio de Janeiro e, a seguir, optando por dirigir o Balé de Monterrey, México, atuando ali, no momento, como coreógrafo residente. Isto tudo para sequenciar uma bela trajetória dançante, de nada menos que três décadas com inúmeras turnês mundiais. Começando, também, a dar vazão a um antigo ideal de integrar a performance coreográfica à representação teatral. Extensiva a algumas incursões cinematográficas, indo desde um curta autoral (Quimera Vermelha) no Festival Cannes 2022, além do ideário de uma longa autobiográfico a ser lançado no próximo ano. Lembrando, ainda, que algumas de suas maiores performances clássicas estão preservadas em registros fílmicos. Nesta sua mais recente criação a que ele denomina, sob uma sutil e subliminar ironia crítica, de Último Ato, originalizada em Lisboa, na continuidade de apresentações em Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. Numa proposta diferencial na carreira de Thiago Soares, mostrando suas aptidões de bailarino clássico, integralizadas num similar nível qualitativo com as danças urbanas. Em performances ao lado de mais quatro atores/bailarinos (Alyne Mach, Elenilson Grecchi, Helio Cavalcanti e Tairine Barbosa) com um assumido sotaque de teatro coreográfico para, neste dimensionamento estético, sugestionar os bastidores do universo da dança. Alternando a linguagem gestual da corporeidade no entremeio de verbalizações confessionais teatralizadas sobre sua vida de artista. Priorizando o cotidiano do oficio de bailarino, dos camarins ao ensaio no palco, do experimento das indumentárias características aos efeitos luminares e sonoros. No alcance de momentos originais como um pas-de-deux com uma barra ou um inspirado recorte cênico, em dialetação de todo elenco com um globo numa espacial projeção plástica do homem vitruviano de Leonardo da Vinci, sob mágicos acordes impressionistas. No que seria a apoteose final transmutada num vocabulário do movimento sob a linguagem híbrida da técnica clássica com o gestual break, acontecendo num teatro imersivo sob luzes psicodélicas que, na prevalência de uma vigorosa dramaturgia da fisicalidade, sinaliza que está longe de ser este o Último Ato... Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança) Último Ato, de Thiago Soares, foi apresentado em turnê por sete cidades brasileiras, desde maio até os dias 7 e 8 de outubro em São Paulo, no Teatro J. Safra.
THIAGO SOARES / LAST ACT: WITHOUT THE LIGHTS GOING OUT, FAR FROM THE FAREWELL
Last Act. Thiago Soares/Direction and Choreography. October/2023. Photos/Disclosure.
Thiago Soares
Who would have thought that a boy from a simple family with limited financial conditions, from one of those common streets of the Rio suburbs, from the spontaneous improvisations of the "break", as if by magic, would become a star of the first magnitude of the most celebrated London stage of classical dance. He has also worked professionally in other spaces consecrated by mythical names in dance or in renowned ballet companies, from the Municipal Theater of Rio de Janeiro to his selection for the Bolshoi or the cast of the Kirov. Before his big break came to become, in a short time, one of the first and absolute dancers of the Royal Ballet. Marianela Nuñez and Thiago Soares of The Royal Ballet rehearse Winter Dreams – World Ballet Day 2018 - video Where for almost two decades he would become one of these victorious dancers/actors, with his dramaturgical characters of male protagonism, in ballets such as Oneguin, Manon or Mayerling. Thus, fulfilling the challenge of confronting the sexist prejudice of his public-school classmates with his visionary reflection that he was only learning theater in a ballet studio. "I've always been interested in getting to know the characters for their theatrical side, for what they bring to the table, for their expressive characteristics. And the fact that I arrived at the Royal helped me a lot in this, because it is a unique company in the world that always manages to bring together theater and dance", was what Thiago Soares told us in an interview for Dança Brasil Magazine, in 2015, still far from his future decision at the age of 38, exchanging the glories of London for the investigative search for new paths in the art of dance. Which he has been doing with the greatest commitment, occasionally returning to his roots as a break dancer connecting them to his solid academic foundation of so many years. Now choreographing and directing an entire show in what was his first classical company, the Municipal Ballet. Or performing in works, with a more contemporary look as in a pas-de-deux (Passion) created by Deborah Colker and danced by the two. Having recently opened a dance studio in Rio de Janeiro and then choosing to direct the Ballet of Monterrey, Mexico, working there, at the moment, as resident choreographer. All this to sequence a beautiful dance trajectory, of no less than three decades with numerous world tours. It also began to give vent to an old ideal of integrating choreographic performance with theatrical representation. Extended to some cinematographic incursions, ranging from an authorial short film (Red Chimera) at the Cannes Festival 2022, in addition to the ideals of an autobiographical feature to be released next year. Remembering, also, that some of his greatest classical performances are preserved in film records. In his most recent creation, which he calls, under a subtle and subliminal critical irony, Último Ato, originally in Lisbon, in the continuity of presentations in Curitiba, Rio de Janeiro and São Paulo. In a differential proposal in the career of Thiago Soares, showing his aptitudes as a classical dancer, integrated at a similar qualitative level with urban dances. In performances alongside four other actors/dancers (Alyne Mach, Elenilson Grecchi, Helio Cavalcanti and Tairine Barbosa) with an assumed choreographic theater accent to, in this aesthetic dimensioning, suggest the backstage of the dance universe. Alternating the gestural language of corporeality in the midst of theatrical confessional verbalizations about his life as an artist. Prioritizing the daily life of the dancer's craft, from the dressing rooms to the rehearsal on stage, from the experiment of the characteristic costumes to the luminary and sound effects. In the reach of original moments such as a pas-de-deux with a bar or an inspired scenic cutout, in dialect of the entire cast with a globe in a spatial plastic projection of Leonardo da Vinci's Vitruvian man, under magical impressionist chords. In what would be the final apotheosis transmuted into a vocabulary of movement under the hybrid language of classical technique with the gestural break, taking place in an immersive theater under psychedelic lights that, in the prevalence of a vigorous dramaturgy of physicality, signals that this is far from being the Last Act... Wagner Corrêa de Araújo (Dance Critic) Último Ato, by Thiago Soares, was presented on tour in seven Brazilian cities, from May to October 7 and 8 in São Paulo, at the J. Safra Theater.
ThiagoSoares Photo: Andrej-Uspensky
ESTHER WEITZMAN CIA DE DANÇA : NO “BREVE” RITO DE PASSAGEM ENTRE A DANÇA E A VIDA
Breve. Esther Weitzman Companhia de Dança. Agosto/2023. Fotos/Renato Mangolin.
Há exatos cinquenta anos o livro “Dançar a Vida", de Roger Garaudy, estabelecia metafórica conexão entre o pensamento filosófico e o ato de dançar. Era uma tese que antecipava um movimento estético no entorno de novas perspectivas para a criação coreográfica e que se estenderia, inclusive, a Maurice Béjart, o responsável pelo entusiasta prefácio original da obra. E quando assistimos à última das obras de Esther Weitzman que ela, simbólicamente, denomina de Breve, chegando a integrar palavras faladas como prólogo do espetáculo, há uma subliminar percepção de permanência do pensar reflexivo de Garaudy : “A dança é um modo de existir”. Como se, ali, num conceitual poético com um sutil sotaque de melancolia, estivessem ela e os três bailarinos (Paulo Marques, Toni Rodrigues e Federico Paredes), num manifesto artístico confessional, em tempo "breve", se despedindo de tudo em caráter definitivo. Sustentados pela similar maturidade profissional de suas trajetórias, sob a brevidade da arte e da vida, frente ao desafio terminal da condição humana. O que concede à performance uma sensorial e carismática cumplicidade emotiva palco/plateia. Onde Esther Weitzman, em dúplice ofício, atua como bailarina além do ideário coreográfico-direcional, contando também com a valiosa parceria artística de Frederico Paredes. Apresentando-se, performaticamente, numa mesma identidade estética de busca investigativa, junto com os artistas/bailarinos Paulo Marques e Toni Rodrigues. Num processo criador que dá sequência a uma linha coreográfica que ela vem desenvolvendo em sua Esther Weitzman Companhia de Dança, desde 1999, para uma dramaturgia corporal que prioriza um gestual cotidiano, longe de quaisquer maneirismos. Na “manifestação exterior dos sentimentos interiores”, com um referencial às teorias de Rudolf Laban, sabendo integrar o movimento numa expressiva linguagem coreográfica antenada em muitos avanços inventivos. Cuja força cênica reside na singularidade das relações temporais estabelecidas pelos bailarinos transitando pelo espaço de uma caixa cênica despojada, sendo preenchida apenas pelo presencial físico desta corporeidade dançante, em imersiva conexão gestual. E no caso de Breve, eles dialogam na intensidade de espontâneos trios e duos, ou se apresentam em delicados solos. Que sugestionam a envolvência do olhar/espectador na personificação simples de uma psicofisicalidade, plena de tocante apelo sensitivo. Com pés nus pisando o chão, paramentados numa funcional indumentária (Manuela Weitzman) dia-a-dia e um desenho de luzes vazadas (José Geraldo Furtado), ora se apresentando em posturas energizadas nos seus caminhares, ora em rodas de ciranda a três. Ou, então, nas relaxantes marcações respiratórias, intermediadas por pausas de silêncio. Impulsionados por uma trilha sonora (Esther Weitzman/Paulo Marques) à base de acordes variados que vão de frases baléticas de Tchaikovsky a solos instrumentais, indo de sonoridades pop/jazzísticas a citações que remetem ao teatro musical. Caracterizando o legado artístico, de percursos individuais ou coletivos, para cada um destes reconhecidos nomes no universo da dança contemporânea, em moldes brasileiros, Breve faz um belo tributo ao convicto empenho de um existir dedicado, em sua integralidade, à arte coreográfica. Esta singular celebração promove, assim, um reencontro da dança com a vida. E porque, afinal, não conecta-la também à lembrança reflexiva de Roger Garaudy no oportuno meio século de seu emblemático livro : “O que aconteceria se, em em vez de apenas construir nossa vida, nós nos entregássemos à loucura ou à sabedoria de dança-la”... Wagner Corrêa de Araújo ( Crítico de Dança) Breve está em cartaz no Sesc Copacabana/Mezanino, de quinta a domingo, às 20hs. Até 06 de agosto.
ESTHER WEITZMAN DANCE COMPANY: IN THE "BRIEF" RITE OF PASSAGE BETWEEN DANCE AND LIFE
Concise. Esther Weitzman Dance Company. August/2023. Photos/Renato Mangolin.
Exactly fifty years ago, Roger Garaudy's book "Dancing Life" made a metaphorical connection between philosophical thought and the act of dancing. It was a thesis that anticipated an aesthetic movement around new perspectives for choreographic creation and that would extend even to Maurice Béjart, who was responsible for the enthusiastic original preface of the work. And when we watch the last of Esther Weitzman's works, which she symbolically calls Breve, even integrating spoken words as a prologue to the show, there is a subliminal perception of the permanence of Garaudy's reflective thinking: "Dance is a way of existing." As if, there, in a poetic conceptual with a subtle accent of melancholy, were she and the three dancers (Paulo Marques, Toni Rodrigues and Federico Paredes), in a confessional artistic manifesto, in a "brief" time, saying goodbye to everything in a definitive character. Sustained by the similar professional maturity of their trajectories, under the brevity of art and life, in the face of the terminal challenge of the human condition. Which gives the performance a sensory and charismatic complicity emotive stage/audience. Where Esther Weitzman, in double craft, acts as a dancer beyond the choreographic-directional ideal, also counting on the valuable artistic partnership of Frederico Paredes. Presenting itself, performatically, in the same aesthetic identity of investigative search, together with the artists/dancers Paulo Marques and Toni Rodrigues. In a creative process that follows a choreographic line that she has been developing in her Esther Weitzman Dance Company, since 1999, for a body dramaturgy that prioritizes an everyday gesture, far from any mannerisms. In the "outer manifestation of inner feelings", with a reference to the theories of Rudolf Laban, knowing how to integrate the movement in an expressive choreographic language tuned in to many inventive advances. Whose scenic force lies in the singularity of the temporal relations established by the dancers transiting through the space of a stripped-down scenic box, being filled only by the physical presence of this dancing corporeality, in immersive gestural connection. And in Breve's case, they dialogue in the intensity of spontaneous trios and duos or perform in delicate solos. That suggest the involvement of the gaze/spectator in the simple embodiment of a psychophysicality, full of touching sensory appeal. With bare feet treading the ground, dressed in a functional day-to-day clothing (Manuela Weitzman) and a drawing of hollow lights (José Geraldo Furtado), sometimes presenting themselves in energized postures in their walks, sometimes in wheels of ciranda to three. Or, in the relaxing respiratory markings, intermediated by pauses of silence. Driven by a soundtrack (Esther Weitzman/Paulo Marques) based on varied chords ranging from Tchaikovsky's balletic phrases to instrumental solos, ranging from pop/jazz sonorities to quotes that refer to musical theater. Characterizing the artistic legacy, of individual or collective paths, for each of these recognized names in the universe of contemporary dance, in Brazilian molds, Breve makes a beautiful tribute to the convinced commitment of an existence dedicated, in its entirety, to choreographic art. This unique celebration thus promotes a reunion of dance with life. And why, after all, not connect it also to the reflective remembrance of Roger Garaudy in the timely half-century of his emblematic book: "What would happen if, instead of just building our life, we gave ourselves over to madness or the wisdom of dancing it?" Wagner Correa de Araújo (Dance Critic) Breve is on display at Sesc Copacabana / Mezzanine, from Thursday to Sunday, at 20hs. Through Aug. 6.
CARLOTA / FOCUS DANÇA PIAZZOLA :
A TRIBUTE TO THE FEMININE AESTHETIC LEGACY IN ALEX NEORAL'S CONCEPTUAL CHOREOGRAPHIC
Charlotte-Focus Dance Piazzola. Alex Neoral/Choreographic design. July/2023. Photos/Cristina Granato. Anticipating the celebration in 2024 of his three decades of scenic incursions, under a permanent sign of inventive searches for contemporary dance in Brazilian molds, Alex Neoral is back with Focus Cia de Dança. Through another unpublished work of the multifaceted creative craft of this idealizer, director and choreographer, titled very much by the way as Carlota - Focus Dança Piazzola. This time, in addition to the commemorative date, paying tribute to four female names driving his artistic/professional training as a dancer and for his future as a choreographer. Through her stints in the Tápias Group of Giselle Tápias, in the Cia Nós da Dança of Regina Sauer, in the Cia Vacilou Dançou of Carlota Portella and in the Cia Déborah Colker. With another original dimensioning to fulfill, thus, a desire of Alex Neoral to create a choreographic / musical show where the eleven compositions of Astor Piazzola are used, in addition to the purpose of homage and gratitude, under a thematic / gestural substrate capable of inspiring expressive work for nine dancers. Full of energy, sensuality and passion and that refers to the memory of the precursor work in the revelation of the fascination that the new tango began to excercer in the universe of contemporary dance. We are talking about Piazzola Caldera that Paul Taylor, in 1997, directed to his Company, and that the cariocas had the privilege of seeing, exactly eight years ago, on the stage of the City of Arts. Transmuted sequentially in the differential choreographic reinterpretations of this musical/dancing genre by some of the most respected European, Latin and Brazilian names, extending to emblematic film approaches such as Carlos Saura's Tango and, now, also integrating the repertoire of Alex Neoral, one of the basic names of our contemporary dance. From the realization of the dream of a choreographic approach of the fascinating compositional collection of Piazzola, always able to impress the public and the critics with its engaging fusion of neoclassical chords and jazzy rhythms, tradition and modernity, far from the prevalence of the mere folklorist appeal as it was known until then the Argentine tango. Where, in the drive of another of Alex Neoral's surprising creations, his sensitive and at the same time critical deciphering eye of the mysteries of choreographic art, is assumed again with commitment, inventive spirit and good taste for a cast of nine exceptional dancers (Bianca Lopes, Carolina de Sá, Cosme Gregory, Letícia Tavares, Lindemberg Malli, Natanael Nogueira, Paloma Tauffer, Vanessa Fonseca and Wesley Tavares). In a scenic setting (Natália Lana) of singular handmade design, functioning as a ceiling / roof that centralizes the stage / arena and, imagetically, serving as a plastic support to an environment of passions, in the trajectory of these "four porteño seasons". Always highlighted in the diverse and emotive visual appeal provoked by the luminary modulations of Anderson Ratto. With beautiful costumes (Maria Osório) in the transparency of sticky knits, under pictorial hues, and pantaloons of fluttering fabrics, without any concerns of characterizing only the masculine or the feminine, but hybridly identifying dancers and dancers in a single sensorial corporeality. Prioritizing a movement in groups, duos and solos, supported by an expressive psychophysicality that exorbitates the technical quality of the nine dancers, making it difficult to underline individual highlights in the face of the convinced uniqueness of the integral surrender to the performance. Instigating in the visionary look of Alex Neoral that away from that melancholized tango of feet on the ground, in a follow-up to the conceptual of this "nuevo tango" molded to feel and think, makes flow a balletic gesture alongside energized gesture of contemporary accent. In a corporeality that references the tradition of tango in the couples embraced while, driven by the modern sound/guide of a bandoneón, it unveils in syncopatic movements of group circularity, a scale of bodies in connection, lofty or thrown to the ground, as if they were all, armed with magical daggers, choreographic "torear en la plaza". For Astor Piazzola, in the synthesis of a phrase by Jorge Luis Borges was the secret of the emblematic process of creation: "In a drawer of my desk, a dagger dreams its tiger dreams." With Carlota-Focus Dança Piazzola, Alex Neoral and his incredible troupe, finally, transubstantiate in an immersive and potential scenic/choreographic body, this inspiring link that united the genius of those two artists "Hermanos"... Review by: Wagner Corrêa de Araújo Carlota – Focus Dança Piazzola is on display at Espaço Arena/Sesc Copacabana, from Thursday to Sunday, at 8pm. Through July 23.
Review by: Wagner Corrêa de Araújo
CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO
NEY MATOGROSSO/HOMEM COM H : A IRREVERENTE TRAJETÓRIA ARTÍSTICA/EXISTENCIAL DE UM ÍCONE DA MPB.
CRÍTICA DE WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO NO BLOG DE ÓPERA & BALLET.
Ney Matogrosso - Homem com H / O Musical. Fernanda Chamma/Marilia Toledo/Direção. Junho 2023. Fotos Adriano Dória. "Rompi tratados / Traí os ritos / Quebrei a lança / Lancei no espaço / Um grito / um desabafo"...(Sangue Latino) Ney Matogrosso. Desde 2022, um musical vem seguidamente retornando, em novas temporadas, aos palcos paulistas. E já prepara seu voo artístico para também encantar o publico carioca, onde deverá aportar no decurso ainda deste segundo semestre. Estamos falando de um dos grandes êxitos da última temporada da Paulicéia com indicações a prêmios como o da APCA e vencedor do Destaque Imprensa Digital 2022 – Ney Matogrosso Homem com H/O Musical. Numa dramaturgia a quatro mãos por Emilio Boechat e Marília Toledo, inspirada a partir de três livros biográficos e dimensionada basicamente por sequencial narrativa cronológica, possibilitando um mergulho em tempos controversos de nossa história, no conflituado convívio da liberdade comportamental de toda uma geração pós-Woodstock com a repressão do regime militar. Ancorando-se numa segura direção concepcional (Fernanda Chamma e Marília Toledo) e contando com um grande elenco ao lado de uma dúplice protagonização titular. Repartida entre a ambiência familiar no interior mato-grossense, na personificação do ainda juvenil artista, pelo também jovem ator Murilo Armacollo, às múltiplas etapas da ascensão de Ney como personalidade icônica no cenário musical brasileiro, na alterativa representação vocal e performática de Renan Mattos. Ney Matogrosso-Homem com H / O Musical. Emílio Boechat/Marília Toledo/Dramaturgia. Junho/2023.Fotos/Adriano Doria.
Na despretensiosa mas extremamente funcional arquiteturação cênica (Carmen Guerra) sustentada apenas por platôs de madeira em vários níveis, à maneira de um show, onde transcorrem todos os registros da trama, desde as cenas mais intimistas às exibições especificamente musicais. Facilitando de vez rápidas mudanças frente à plateia, de um clima para outro, incluídos os figurinos (Michelly X) e o visagismo (Edgar Cardoso) extremamente peculiar do personagem. São várias décadas desde os anos provincianos no enfrentamento e no desafio adolescente ao conservadorismo de um pai militar, à pressão social contra a livre identificação sexual de uma geração libertária sob o signo de viagens psicodélicas de paz e amor, às passagens por Brasília onde Ney Matogrosso experimenta o ofício de ator. Para o descortino, no entremeio de suas aventuras paulistas e cariocas, da surpresa inventiva de uma atuação assumidamente diferencial na banda Secos & Molhados, sinalizada sempre por uma postura andrógina, o que transforma Ney Matogrosso em instântaneo fenômeno de mídia. Com suas performances irreverentes, sob aquarelada maquiagem e corporeidade seminua em gestual inusitado, nos palcos e na televisão, num posicionamento de resistência à época ditatorial. Onde vão se sucedendo envolventes caracterizações de figuras como as de Rita Lee (Hellen de Castro), parceiros musicais de shows, empresários, além da referência presencial de incisivos relacionamentos amorosos tais como Cazuza (Vinicius Loyola) e Marco de Maria, vítimas fatais da Aids. Tudo acentuado com o apuro de vazados efeitos luminares (Fran Barros/Tulio Pezzoni) que imprimem à energizada linguagem coreográfica (Fernanda Chamma) um sotaque pleno de requebros e expressões faciais de híbrida sexualidade marcando, assim, o caminho precursor do cantor em shows direcionados a todos os gêneros e gostos e sob o aplauso de quaisquer idades. Priorizando pelo dúplo comando direcional (Fernanda Chamma e Marília Toledo) provocantes e erotizadas formas de representação cênica e musical, amplificadas nos arranjos de artesanal trilha sonora (da lavra de Daniel Rocha). Enquanto a performance de Renan Mattos faz temer, a princípio, a adoção de uma linha mais afetada pelas eventuais fragilidades de um intérprete cover, esta impressão acaba superada com o seu mimetismo especular revelando, afinal, uma fluente e sensorial adequação psicofísica ao papel que atrai a cumplicidade interativa da plateia. E não foi por um mero acaso que o próprio Ney Matogrosso, ao assistir o espetáculo, dirigiu-se ao camarim e abraçou com indisfarçável emoção o personagem e o ator que Renan Mattos faz viver ali com tão intensa convicção... Wagner Corrêa de Araújo
Ney Matogrosso Homem com H – O Musical está em cartaz no Teatro Procópio Ferreira/Rua Augusta/SP, até domingo, 2 de Julho.
Reviews:Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança)
NEY MATOGROSSO/HOMEM COM H : THE IRREVERENT ARTISTIC/EXISTENTIAL TRAJECTORY OF AN MPB ICON. .
REVIEW OF WAGNER CORRÊA DE ARAÚJO IN THE OPERA BLOG & BALLET.
Ney Matogrosso - Man with H/O Musical. Fernanda Chamma/Marilia Toledo/Direction. June 2023. Photos Adriano Dória. "I broke treaties / I betrayed the rites / I broke the spear / I threw into space / A scream / an outburst"... (Latin Blood) Ney Matogrosso. Since 2022, a musical has been returning, in new seasons, to the stages of São Paulo. And it is already preparing its artistic flight to also delight the carioca public, where it should dock during this second semester. We are talking about one of the great successes of the last season of Paulicéia with nominations for awards such as the APCA and winner of the Highlight Digital Press 2022 – Ney Matogrosso Homem com H/O Musical. In a four-hand dramaturgy by Emilio Boechat and Marília Toledo, inspired by three biographical books and basically dimensioned by sequential chronological narrative, allowing a dive into controversial times of our history, in the conflicted coexistence of the behavioral freedom of an entire post-Woodstock generation with the repression of the military regime. Anchoring itself in a safe conceptional direction (Fernanda Chamma and Marília Toledo) and counting on a large cast alongside a double titular protagonist. Divided between the family ambience in the interior of Mato Grosso, in the personification of the still juvenile artist, by the also young actor Murilo Armacollo, to the multiple stages of Ney's rise as an iconic personality in the Brazilian music scene, in the alterative vocal and performance representation of Renan Mattos. Ney Matogrosso-Man with H/O Musical. Emilio Boechat/Marília Toledo/Dramaturgy. June/2023.Photos/Adriano Doria.
In the unpretentious but extremely functional scenic architecture (Carmen Guerra) supported only by wooden plateaus on several levels, in the manner of a show, where all the records of the plot take place, from the most intimate scenes to the specifically musical exhibitions. Facilitating once and for all quick changes in front of the audience, from one climate to another, including the costumes (Michelly X) and the extremely peculiar visagism (Edgar Cardoso) of the character. It is several decades from the provincial years in the confrontation and adolescent challenge to the conservatism of a military father, to the social pressure against the free sexual identification of a libertarian generation under the sign of psychedelic journeys of peace and love, to the passages through Brasilia where Ney Matogrosso experiences the craft of actor. For Descortino, in the midst of his São Paulo and Rio adventures, the inventive surprise of an admittedly differential performance in the band Secos & Molhados, always signaled by an androgynous posture, which transforms Ney Matogrosso into an instantaneous media phenomenon. With his irreverent performances, under watercolor makeup and half-naked corporeality in unusual gestures, on stage and television, in a position of resistance to the dictatorial era. Where engaging characterizations of figures such as Rita Lee (Hellen de Castro), musical partners of shows, businessmen, in addition to the face-to-face reference of incisive love relationships such as Cazuza (Vinicius Loyola) and Marco de Maria, fatal victims of AIDS. All accentuated with the plight of leaked luminary effects (Fran Barros/Tulio Pezzoni) that imprint on the energized choreographic language (Fernanda Chamma) an accent full of breaks and facial expressions of hybrid sexuality thus marking the precursor path of the singer in shows directed to all genres and tastes and under the applause of any ages. Prioritizing by the double directional command (Fernanda Chamma and Marília Toledo) provocative and eroticized forms of scenic and musical representation, amplified in the arrangements of handmade soundtrack (from the work of Daniel Rocha). While the performance of Renan Mattos makes fear, at first, the adoption of a line more affected by the eventual fragilities of a cover interpreter, this impression ends up overcome with his specular mimicry revealing, after all, a fluent and sensorial psychophysical adaptation to the role that attracts the interactive complicity of the audience. And it was not by mere chance that Ney Matogrosso himself, while watching the show, went to the dressing room and embraced with undisguised emotion the character and the actor that Renan Mattos makes live there with such intense conviction ... Wagner Correa de Araújo
Ney Matogrosso Homem com H – The Musical is on display at Teatro Procópio Ferreira/Rua Augusta/SP, until Sunday, July 2nd.
SÃO PAULO CIA DE DANÇA/SPCD : 15 ANOS SOB SURPREENDENTE PROCESSO DE CRIAÇÃO
I've Changed My Mind de Shahar Binyamini Photo: Charles Lima
Ao completar seus 15 anos de ininterrupto processo de busca investigativa nos mais diversos caminhos da arte coreográfica a São Paulo Companhia de Dança - SPCD comemora a data titulando simbolicamente a sua temporada 2023 como Labirintos em Movimento. Mantendo, assim, seu marco estético de incursões da tradição clássica à modernidade embora prioritariamente privilegie a dança contemporânea, destacando-se aí com um repertório que reune o melhor do acervo internacional àquele idealizado em moldes de brasilidade. Com criações inéditas de coreógrafos brasileiros ao lado de obras representativas do além mar, numa amostragem acurada do que há de mais revelador e instigante na linguagem da dança, com um permanente olhar armado na contemporaneidade. Não faltando nunca à SPCD o seguro comando artístico e educacional de sua diretora Inês Bógea para uma Cia de reconhecida qualidade técnica e com a artesanal performance de seus bailarinos, sempre sob o habitual aplauso do público e o reconhecimento da crítica. O programa 2023 alternou releituras do repertório clássico mantendo as suas estruturas estilísticas básicas tanto no Ato II de Giselle como em Les Sylphides, nas respectivas remontagens de Lars van Cauwenbergh e de Ana Botafogo. Completadas por uma bonita versão por Diego de Paula para uma Suíte de Paquita a partir de Petipa/Minkus. Neste último caso, abrindo a noite que encerra o primeiro ciclo 2023 de espetáculos. E já envolvendo a plateia com o clima romântico que neste balé foge do padrão característico das obras de temática sobrenatural daquele período, focando mais nas energizadas performances técnicas, com muitos giros, pontas, saltos e piruetas que se tornam exponenciais nas variações do Grand Pas final. Em precisos solos de protagonização de Paquita e de Lucien, extensivos ao Pas de Quatre e a um preciso sustento grupal de um Corpo de Baile feminino. Suite de Paquita por Diego de Paula Photo: Charles Limaed Gala Classica / SPCD - Video Ao iniciar-se Ibi-Da Natureza ao Caos há uma imediata percepção, nos bastidores, de um lamentoso grito de protesto enquanto se ouvem ruídos de uma cantoria tribal, ritmada percussivamente por pés no solo do palco. Resultado dos resilientes questionamentos no entorno do caótico status quo assumido pelos humanos em seu descaso pelo sagrado e ancestral legado da natureza. ibi da natureza ao caos de gal martins Photo: marcelo machado Esta obra de Gal Martins, uma artista da periferia, alia o ideário do ativista indígena Ailton Krenak, através de O Amanhã Não Está a Venda, ao devir-animal de Gilles Deleuze em sua proposta filosófico/comportamental de um necessário estado de não ser homem e nem bicho. Impressionando por sua impactante ambiência cenográfica sob metafórica desconstrução de uma paisagem florestal, ampliada nos acordes vocais afro/indigenistas, luzes entre sombras, indumentária e visagismo com sugestionamento ritualístico. Numa fusão com a corporeidade gestual dos bailarinos, ora arrastando-se pelo chão ora erguendo-se, braços estendidos e mãos ao alto, num grito de dor e de revolta, convergindo tudo para um visceral e reflexivo teatro coreográfico. Mas é a terceira parte do espetáculo a responsável pela maior surpresa criativa num dimensionamento múltiplo da obra coreográfica, não só por seus aspectos plásticos e efeitos cinéticos, mas também por seu imersivo mergulho na completa expressividade de uma dramaturgia corporal. I've Changed My Mind de Shahar Binyamini Photo: Charles Lima I’ve Changed My Mind torna emotivamente presencial para os bailarinos e espectadores a exploração inventiva de um vocabulário do movimento com a assinatura singular do coreógrafo israelense Shahar Binyamini. Numa trajetória que vai do Batsheva Dance Company ao movimento Gaga, tornando-se um dos nomes emblemáticos da dança de nosso tempo. Esta obra, criada especialmente para a SPCD, é um experimento arrojado na integralização de um contexto coreográfico pleno de uma força interior e que se irradia na espontaneidade de cada gesto, direcionando-se a um primado do sensorial através de corpos em conexão. Expandindo-se por intermédio de um figurino de malhas coladas, em sutil e subliminar referência que remete à sensualidade original do Fauno de Nijinsky. Com luzes psicodélicas que conduzem a efeitos cinéticos e a uma psicofisicalidade, ressaltando a assexualidade visual de bailarinos onde todos se identificam na plasticidade coletiva de um único corpo que pensa e dança, ao compasso de uma trilha antológica arquitetada na decorrência de temas de Maurice Ravel a Hans Zimmer. I've Changed My Mind de Shahar Binyamini Photo: Charles Lima Sendo capaz, enfim, de contextualizar através destes inspirados Labirintos em Movimento, o enigma poético de Cecília Meireles que se transmuta em cada um de nós: “Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória. / Construirás os labirintos impermanentes / Que sucessivamente habitarás. / Todos os dias estás refazendo o teu desenho”... Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança)
Suite de Paquita por Diego de Paula Photo: Charles Limaed
ibi da natureza ao caos de gal martins Photo: marcelo machado
SPCD/ IBI - Da Natureza ao Caos. Gal Martins/Concepção Coreográfica.Junho/2023. Foto/Marcelo Machado A São Paulo Companhia de Dança/SPCD retorna aos palcos paulistas em agosto, com as estréias de Le Chant Du Rossignol, de Marco Goecke, e em outubro, com Petrushka, de Goyo Montero.
SÃO PAULO CIA DE DANÇA/SPCD: 15 YEARS UNDER A SURPRISING CREATION PROCESS
Ibi da Natureza ao Caos de Gal Martins Photo: Jane Coutoled
Upon completing its 15 years of uninterrupted process of investigative search in the most diverse paths of choreographic art, São Paulo Companhia de Dança - SPCD commemorates the date by symbolically titling its 2023 season as Labirintos em Movimento . Thus, maintaining its aesthetic framework of incursions from classical tradition to modernity, while prioritizing contemporary dance, standing out there with a repertoire that brings together the best of the international collection to that idealized in Brazilian molds. With unpublished creations by Brazilian choreographers alongside representative works from overseas, in an accurate sampling of what is most revealing and thought-provoking in the language of dance, with a permanent armed look at contemporaneity. SPCD never lacks the sure artistic and educational command of its director Inês Bógea for a Company of recognized technical quality and with the artisanal performance of its dancers, always under the usual applause of the public and the recognition of the critics. The 2023 program alternated reinterpretations of the classical repertoire, maintaining its basic stylistic structures both in Act II by Giselle and in Les Sylphides , in the respective revivals by Lars van Cauwenbergh and Ana Botafogo. Completed by a beautiful version by Diego de Paula for a Suite by Paquita from Petipa/Minkus. In the latter case, opening the night that closes the first 2023 cycle of shows. And already involving the audience with the romantic atmosphere that in this ballet deviates from the characteristic pattern of supernatural-themed works of that period, focusing more on energized technical performances, with many turns, points, jumps and pirouettes that become exponential in the variations of the final Grand Pas . In precise solos featuring Paquita and Lucien , extended to the Pas de Quatre and the precise group support of a female Corps de Ballet. When Ibi-Da Natureza ao Caos begins, there is an immediate perception, behind the scenes, of a plaintive cry of protest while the noise of tribal singing is heard, percussively rhythmed by feet on the stage floor. Result of the resilient questions surrounding the chaotic status quo assumed by humans in their disregard for the sacred and ancestral legacy of nature. This work by Gal Martins, an artist from the periphery, combines the ideas of the indigenous activist Ailton Krenak, through O Amanhã Não Está a Venda , with the becoming-animal of Gilles Deleuze in his philosophical/behavioral proposal of a necessary state of not being a man and no animal. Impressing for its impactful scenographic ambience under the metaphorical deconstruction of a forest landscape, amplified in the Afro/indigenous vocal chords, lights between shadows, clothing and visagism with ritualistic suggestion. In a fusion with the gestural corporeality of the dancers, now dragging themselves along the ground and now rising, arms outstretched and hands raised, in a cry of pain and revolt, converging everything into a visceral and reflective choreographic theatre. But it is the third part of the show that is responsible for the greatest creative surprise in a multiple dimensioning of the choreographic work, not only for its plastic aspects and kinetic effects, but also for its immersive dive into the complete expressiveness of a corporal dramaturgy. I've Changed My Mind makes emotionally present for dancers and spectators the inventive exploration of a movement vocabulary with the unique signature of Israeli choreographer Shahar Binyamini . In a trajectory that goes from the Batsheva Dance Company to the Gaga movement , becoming one of the emblematic names of dance of our time. This work, created especially for SPCD , is a bold experiment in the integration of a choreographic context full of inner strength that radiates in the spontaneity of each gesture, directing itself towards a primacy of the sensorial through bodies in connection. Expanding through a glued mesh costume, in a subtle and subliminal reference that refers to the original sensuality of Nijinsky's Faun . With psychedelic lights that lead to kinetic effects and a psychophysicality, emphasizing the visual asexuality of dancers where everyone identifies in the collective plasticity of a single body that thinks and dances, to the beat of an anthological track designed as a result of themes from Maurice Ravel to Hans Zimmer. Finally, being able to contextualize, through these inspired Labyrinths in Motion , Cecília Meireles' poetic enigma that transmutes in each of us: “ You have your eyes, your pulse, your memory. / You will build the impermanent labyrinths / That you will successively inhabit. / Every day you are redoing your drawing”... Wagner Correa de Araujo
São Paulo Companhia de Dança/SPCD returns to the stages of São Paulo in August, with the premiere of Le Chant Du Rossignol, by Marco Goecke, and in October, with Petrushka, by Goyo Montero.
CIA DE BALLET DALAL ACHCAR EM NOVA TEMPORADA NO RIO DE JANEIRO
Três belíssimos espetáculos de dança da Cia de Ballet Dalal Achcar serão apresentados no Teatro Riachuelo nos próximos dias: o recente sucesso “Tal Vez”, foi ovacionado em São Paulo, e entra em cartaz nesta sexta, dia 16, onde fica até o domingo, dia 18, e os inéditos “Sem Você” e “Macabéa”, que estreiam na outra semana, a partir do dia 23. As apresentações acontecem no Teatro Riachuelo, no Rio. Montados pela companhia que tem o crivo de excelência de Dalal Achcar, grande dama da dança nacional, Tal Vez é do premiado coreógrafo Alex Neoral; “Sem Você”, é do coreógrafo e maitre de ballet Éric Frédéric; e "Macabéa", inspirado na obra “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, é criação da primeira bailarina do Ballet do Theatro Municipal, Márcia Jaqueline, que estreia como coreógrafa do espetáculo. No caso de TAL VEZ, será uma nova oportunidade para o público conferir, neste final de semana, o espetáculo que é lindíssimo, uma explosão de cores, e é uma parceria da grande Grupo de pessoas num palco com luzes vermelhas. Dias 16 e 17 de junho, sexta e sábado, às 20h/ Dia 18 de junho, domingo, às 17h Duração: 70 minutos (sem intervalo) Local: Teatro Riachuelo Rio - Rua do Passeio, 38/40 – Centro - RJ
"TAL VEZ", jogo de palavras que brinca com 'talvez' e 'aquela vez', dá nome à produção com coreografias baseadas em encontros marcados que geram desencontros e mostram como esses momentos da vida podem resultar em novas experiências. Além do conceito, as cenas serão compostas também pelo movimento de desconstrução dos figurinos em camadas ao longo do espetáculo.
A montagem da Cia de Ballet Dalal Achcar e com coreografia de Alex Neoral traz 18 bailarinos que combinam dança contemporânea e técnica clássica. Os figurinos do espetáculo são de João Pimenta (Romeu & Julieta ao som de Marisa Monte) e o cenário de Natalia Lana (A Cor Púrpura), ambos premiadíssimos, o que garante que o público seja completamente envolvido na história. A trilha sonora escolhida especialmente por Alex Neoral reúne canções inspiradas em trilhas de filmes de cineastas como o espanhol Pedro Almodóvar, o italiano Ettore Scola e o americano Woody Allen. Tudo num grande encontro da dama do Ballet nacional com o premiado Alex Neoral. Os ingressos variam de R$ 36 a R$ 60.
TAL VEZ / DALAL ACHCAR E ALEX NEORAL : EM SURPREENDENTE PARCERIA DE DUAS GERAÇÕES DA CRIAÇÃO COREOGRÁFICA BRASILEIRA
Tal Vez / Cia de Ballet Dalal Achcar. Coreografia - Alex Neoral. Abril 2022. Fotos/Márcia Ribeiro. No respirar de novos ares com o fim da reclusão pandêmica um dos primeiros espetáculos a voltar aos palcos foi a Cia de Ballet Dalal Achcar que, através de sua diretora/coreógrafa, teve a boa e bela ideia de confiar na habitual competência criativa de Alex Neoral – o mentor da Focus Cia de Dança – para idealizar uma concepção coreográfica exclusiva para os seus 18 jovens bailarinos. Espetáculo que foi titulado simbolicamente de Tal Vez, numa lúdica aliteração vocabular com dúplice significado, em seu referencial de desafio à solidão humana, perceptivelmente ampliada no isolamento forçado de dois anos pandêmicos e confrontada diante do desejo pela busca dos encontros perdidos e que agora entra de novo em cartaz numa curta mas imperdível temporada. Numa tematização metafórica de um baile acompanhado por melodiosos acordes de antigas canções de sucesso sob um repertório de prevalência nostálgica, provocando lembranças e evocando saudades. Dimensionada através da trajetória expositiva de gêneros cantantes ora românticos, ora melodramáticos, ora dançantes, num apanhado memorial de paixões e desencontros, brigas e reconciliações, em duplo oficio de Alex Neoral como coreógrafo e responsável pelo roteiro musical. Onde a caixa cênica, em original concepção de Natalia Lana, é preenchida por jogos de cortinas em diversos planos, provocando uma plasticidade funcional capaz de sugestionar, sobre o acertado jogo de projeções e luzes aquareladas (Paulo Cesar Medeiros), uma atmosfera de sonhos e delírios quase surreal. E o figurino de João Pimenta, através da coloração das malhas e dos cetins esvoaçantes, numa abrangente extensão desta fantasia. Inicializado em tons soturnos na entrada hierática dos bailarinos, cobertos por capas formais, apresentando sutilmente traços de sua indumentária idealizada para o musical Romeu e Julieta. Em peças de vestuário superpostas e que vão sendo despojadas na climatização de um psicodelismo tropicalista, entremeado ora com tonalidades vibrantes, ora ironicamente melancolizado pelas variações luminares. Tudo convergindo numa sequência de citações cênicas sob recortes cinéticos, de estilizações musicais/teatrais como revistas, teatro cabaré, music hall e musicais de palco ou cinematográficos, de várias épocas e lugares. Numa dramaturgia da fisicalidade sincronizando movimentos rítmicos, antenados na contemporaneidade de uma linguagem com eficaz aproveitamento da base clássica dos bailarinos de Dalal Achcar. Traduzida num vocabulário gestual pulsante em sua corporeidade coreográfica, de energizados quadros coletivos a introspectivos solos e duos, expressando performáticas reações emotivas ou críticas, conectadas no teor simbológico das palavras cantadas. Para, assim, viabilizar este Tal Vez, evidenciado na qualificada convergência de seus elementos técnicos e artísticos, do convicto desempenho de seu corpo dançante ao potencializado destaque de sua concepção cênico/coreográfica, no cuidado artesanal do olhar de Alex Neoral. Ritualizado no compartilhar sensorial palco e plateia, bailarinos e espectadores, como um singular teatro coreográfico, sob um sutil sotaque a la Pina Bausch, com uma luminosa conexão de nostálgica latinidade manifestada com um prevalente espírito de brasilidade... Wagner Corrêa de Araújo
ENGLISH
TAL VEZ / DALAL ACHCAR AND ALEX NEORAL : IN SURPRISING PARTNERSHIP OF TWO GENERATIONS OF BRAZILIAN CHOREOGRAPHIC CREATION
Tal Vez / Cia de Ballet Dalal Achcar. Choreography - Alex Neoral. April 2022. Photos/Márcia Ribeiro. In the breath of new air with the end of the pandemic seclusion one of the first shows to return to the stage was the Cia de Ballet Dalal Achcar which, through its director/choreographer, had the good and beautiful idea of relying on the usual creative competence of Alex Neoral – the mentor of Focus Cia de Dança – to devise an exclusive choreographic conception for its 18 young dancers. A show that was symbolically titled Tal Vez, in a playful alliteration of words with double meaning, in its reference of challenge to human loneliness, perceptibly amplified in the forced isolation of two pandemic years and confronted by the desire for the search for lost encounters and that now goes on display again in a short but unmissable season. In a metaphorical thematization of a dance accompanied by melodious chords of old hit songs under a repertoire of nostalgic prevalence, provoking memories and evoking nostalgia. Dimensioned through the exhibition trajectory of singing genres sometimes romantic, sometimes melodramatic, sometimes danceable, in a memorial collection of passions and disagreements, fights and reconciliations, in double office of Alex Neoral as choreographer and responsible for the musical script. Where the scenic box, in original conception of Natalia Lana, is filled by games of curtains in various planes, provoking a functional plasticity capable of suggesting, on the right game of projections and watercolor lights (Paulo Cesar Medeiros), an atmosphere of dreams and delusions almost surreal. And the costume of João Pimenta, through the coloring of the meshes and the flowing satins, in a comprehensive extension of this fantasy. Initialized in somber tones at the hieratic entrance of the dancers, covered by formal covers, subtly presenting traces of their idealized costume for the musical Romeo and Juliet. In overlapping garments that are being stripped down in the climatization of a tropicalist psychedelic, interspersed sometimes with vibrant tones, sometimes ironically melancholy by the luminary variations. All converging in a sequence of scenic quotations under kinetic cutouts, of musical/theatrical stylizations such as magazines, cabaret theater, music hall and stage or cinematic musicals, from various times and places. In a dramaturgy of physicality synchronizing rhythmic movements, tuned in the contemporaneity of a language with effective use of the classical basis of the dancers of Dalal Achcar. Translated into a pulsating gestural vocabulary in its choreographic corporeality, from energized collective paintings to introspective solos and duos, expressing performative emotional or critical reactions, connected in the symbolic content of the words sung. To thus make this Tal Vez viable, evidenced in the qualified convergence of its technical and artistic elements, from the convinced performance of its dancing body to the potentiated prominence of its scenic/choreographic conception, in the artisanal care of Alex Neoral's gaze. Ritualized in the sensorial sharing of stage and audience, dancers and spectators, as a singular choreographic theater, under a subtle accent a la Pina Bausch, with a luminous connection of nostalgic Latinity manifested with a prevalent spirit of Brazilianness... Wagner Correa de Araújo
Venu -Theatro RIACHUELO do Rio de Janeiro, 16th to 25th of June 2023
Date line: Friday the 16th of June, 2023
The Municipal Theater Ballet
BALLET MACUNAÍMA RETURNS TO THE TM STAGE IN JUNE
Based on the book of the same name by Mário de Andrade, the ballet Macunaíma returns to the stage of the Municipal Theater with the Corpo de Baile and Symphony Orchestra of the house. Directed by AATM and sponsored by Ouro Petrobras, music specially composed by the award-winning Ronaldo Miranda, unprecedented choreography by Carlos Laerte, conception and script by André Cardoso, the show in one act and four scenes has the Amazon jungle, in the region of the Uraricoera river, as its initial scenario. , the birthplace of Macunaíma, where the Tapanhumas Indians live. With image and photography direction by Igor Correa, conducting by Jésus Figueiredo and artistic supervision by Hélio Bejani and Jorge Texeira, the ballet will be presented in a short season, from June 14 to 17, at 7 pm and on June 18, at 5 pm . The president of Fundação Teatro Municipal, Clara Paulino, emphasizes the importance of this show: “Due to the great success of this show last year, we decided to bring back this very important national work, which brings up the discussion on the Brazilian ethnic issue. In addition, the realization of Macunaíma at Theatro Municipal relies on great partnerships and new languages, and we highlight the beautiful work brought by the Graffiti Museum and Coletivo Trouxinhas to the stage of our Theatro”. Macunaíma was conceived by the maestro, professor at UFRJ and coordinator of Projeto Sinos, André Cardoso. The original ballet had its premiere in 2022 and now returns to the stage of the Municipal, in a short season: “ Macunaíma is the most emblematic book of Brazilian modernism. The ballet version was created in 2022 to commemorate the centenary of Modern Art Week. The show's success brings it back to the stage where it premiered, thus reaffirming the relevance of the partnership between Funarte and the Federal University of Rio de Janeiro with Fundação Theatro Municipal. That the partnership can promote new works and new shows, providing the public of Rio de Janeiro with contact with contemporary production” – concludes André Cardoso.
Fotos: Daniel Ebendinger
MACUNAÍMA/BALÉ DO TMRJ : RESGATANDO A IDENTIDADE MÍTICA DE UM HERÓI MODERNISTA Macunaíma. Balé do TMRJ. Coreografia Carlos Laerte, coreografia. Ronaldo Miranda, música. Setembro/2022. Fotos/Conrado Krivochein. Desde os anos 30, o Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro sempre privilegiou, ao lado do repertório clássico internacional, obras inspiradas em composições brasileiras (inicialmente, de Villa-Lobos e Mignone, a Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez) coreografadas inclusive por criadores do naipe de Serge Lifar e Léonid Massine. Sendo mais do que louvável a retomada deste ideário em compasso comemorativo nacionalista, tanto do Bicentenário da Independência como dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, através da primeira versão completa para o palco coreográfico de obra simbólica deste movimento – Macunaíma. Na trilha de um clássico fenômeno de desconstrução investigativa dos paradigmas estilísticos e convencionalismos temáticos da arte e da literatura Macunaíma, 1928, criação mor de Mario de Andrade pós Semana de 22, alcança sua primeira reinterpretação sob o propósito de uma nova instauração coreográfica da identidade cultural brasileira, em torno deste “herói sem nenhum caráter”. Depois das emblemáticas releituras para o cinema, com Joaquim Pedro de Andrade, 1969; para os palcos teatrais, por Antunes Filho, 1978; na irreverente versão concepcional de Bia Lessa, 2019; e, agora, para o universo da dança contemporânea. Em idealização dúplice do coreógrafo Carlos Laerte a partir da composição inédita de Ronaldo Miranda, plena de brasilidade em seus calorosos acordes sinfônicos (aqui, conduzidos artesanalmente por Jésus Figueiredo à frente da OSTM). Enunciada (por intermédio do roteiro de André Cardoso) no fio condutor do original literário, embora sujeito a um olhar diferencial armado na contemporaneidade, mas sem a nuance mais transgressora de Bia Lessa ou o substrato mais assumidamente ingênuo e primitivista de Antunes Filho. Num dimensionamento estético do encontro das linguagens do cinema e da dança através das inserções de imagens projecionais (Igor Corrêa), em proposta de interatividade pictórica, na fusão presencial dos bailarinos com as imagens cinéticas referenciais à floresta amazônica. Sem deixar de lado uma citação fílmica, em tom de denúncia, sobre os absurdos de uma equivocada política de descaso ao meio ambiente, em flashes de incêndios, com a invasão exploratória das terras indígenas, sequenciada no polêmico assassinato recente de dois de seus grandes defensores (Bruno Araújo e Dom Phillips). Em energizada performance coletiva de quase 50 bailarinos, entremeada por solos e duos (com destaques na atuação feminina de Márcia Jaqueline e das irmãs Claudia e Priscilla Mota), envolvendo o vigoroso protagonismo tríptico de Glayson Mendes, Rodolfo Saraiva e Edifranc Alves. Respectivamente representativo da trajetória em quatro momentos do personagem titular, de sua geração materna em ambiência indígena ao seu inusitado comportamental urbano e o seu libertário destino mítico como habitante do espaço sideral. Numa progressão dramática em contextual cênico de rubricas soturnas, acentuadas por luzes entre sombras (Paulo Ornellas), num formalismo estetizante coesivo com os fotogramas em preto e branco mas indo além da tonalidade ideal. Ao escurecer o visceral paisagismo urbano muralista e a mais clara percepção do uso de traços aquareladas, no visagismo corporal e na indumentária (Wanderley Gomes), a partir do legado dos pintores modernistas de 22. Onde a incisiva exploração gestual (Carlos Laerte) de corpos em conexão revela instintiva amarração rítmica de contrações musculares capazes de remeterem, simultaneamente, ao contraponto de um gestual indigenista à adequação da fisicalidade à herança afro-brasileira e aos movimentos da dança urbana. Fazendo, enfim, desta proposta de buscas investigativas mais ousadas para o Balé do TM, um necessário e questionador instante cultural de um País em crise de identidade, ecoando nas palavras iconicamente visionárias de Mário de Andrade para contextualizar Macunaíma :“Eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte em que me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo”...<<<<<<<<<<<< Wagner Corrêa de Araújo (Crítico de Dança)
Date line: Wednesday the 14th of June, 2023
MACUNAÍMA/TMRJ BALLET: RESCUING THE MYTHICAL IDENTITY OF A MODERNIST HERO Macunaíma. TMRJ Ballet. Choreography Carlos Laerte, choreography. Ronaldo Miranda, music. September/2022. Photos/Conrad Krivochein. Since the 30s, the Ballet of the Municipal Theater of Rio de Janeiro has always privileged, alongside the international classical repertoire, works inspired by Brazilian compositions (initially, from Villa-Lobos and Mignone, to Camargo Guarnieri and Lorenzo Fernandez) choreographed even by creators of the suit of Serge Lifar and Léonid Massine. It is more than commendable the resumption of this ideology in nationalist commemorative compass, both of the Bicentennial of Independence and of the 100 years of the Week of Modern Art, through the first complete version for the choreographic stage of symbolic work of this movement – Macunaíma. In the wake of a classic phenomenon of investigative deconstruction of the stylistic paradigms and thematic conventionalisms of art and literature Macunaíma, 1928, Mario de Andrade's main creation after Semana de 22, reaches its first reinterpretation under the purpose of a new choreographic establishment of the Brazilian cultural identity, around this "hero without any character". After the emblematic rereadings for the cinema, with Joaquim Pedro de Andrade, 1969; for the theatrical stages, by Antunes Filho, 1978; in the irreverent conceptional version of Bia Lessa, 2019; and, now, to the universe of contemporary dance. In double idealization of the choreographer Carlos Laerte from the unpublished composition of Ronaldo Miranda, full of Brazilianness in its warm symphonic chords (here, handcrafted by Jésus Figueiredo at the head of OSTM). Enunciated (through the script of André Cardoso) in the guiding thread of the literary original, although subject to a differential look armed in contemporaneity, but without the most transgressive nuance of Bia Lessa or the more admittedly naïve and primitivist substrate of Antunes Filho. In an aesthetic dimensioning of the encounter of the languages of cinema and dance through the insertions of projectional images (Igor Corrêa), in a proposal of pictorial interactivity, in the face-to-face fusion of the dancers with the kinetic images referential to the Amazon forest. Without leaving aside a filmic quote, in a tone of denunciation, about the absurdities of a misguided policy of neglect of the environment, in flashes of fires, with the exploratory invasion of indigenous lands, sequenced in the controversial recent murder of two of its great defenders (Bruno Araújo and Dom Phillips). In an energized collective performance of almost 50 dancers, interspersed with solos and duos (with highlights in the female performance of Márcia Jaqueline and sisters Claudia and Priscilla Mota), involving the vigorous triptych protagonism of Glayson Mendes, Rodolfo Saraiva and Edifranc Alves. Respectively representative of the trajectory in four moments of the titular character, from his maternal generation in indigenous ambience to his unusual urban behavior and his libertarian mythical destiny as an inhabitant of outer space. In a dramatic progression in scenic contextual of somber rubrics, accentuated by lights between shadows (Paulo Ornellas), in an aestheticizing formalism cohesive with the black and white frames but going beyond the ideal tonality. By darkening the visceral muralist urban landscaping and the clearest perception of the use of watercolor features, in body visagism and clothing (Wanderley Gomes), from the legacy of the modernist painters of 22. Where the incisive gestural exploration (Carlos Laerte) of bodies in connection reveals instinctive rhythmic binding of muscular contractions capable of referring, simultaneously, to the counterpoint of an indigenist gesture to the adequacy of physicality to the Afro-Brazilian heritage and to the movements of urban dance. Finally, making this proposal of more daring investigative searches for the TM Ballet a necessary and questioning cultural moment of a country in identity crisis, echoing in the iconically visionary words of Mário de Andrade to contextualize Macunaíma: "I copied Brazil, at least in that part where I was interested in satirizing Brazil through itself"... Wagner Corrêa de Araújo (Dance Critic)